Artigo do Mons. Dr. Octavio Nicolas Derisi para a revista Reconquista, volume I, nº 3 (1950)
Octavio Nicolas Derisi, expoente do neotomismo argentino na metade do século XX |
1. O homem não é a plenitude do ser. Contingentemente existente, seu ser está recortado na sua existência pelas notas finitas de sua essência.
Daí que o não-ser da finitude seja sua herança essencial, que limita sua entranha ôntica e circunscreve sua atividade ao modo do seu ser. A fraqueza, a enfermidade e a morte, no plano físico, a ignorância e o erro no de sua inteligência, as paixões, a debilidade de sua liberdade e a defecção moral, no plano de sua vontade; em uma palavra, o não-ser do ser, no plano ôntico - que no plano físico e moral constitui o mal - desgarra e compromete constantemente a perfeição do seu ser e de sua atividade em todas as ordens.
2. Precisamente o não-ser a plenitude do ser senão somente tê-lo contingente e finitamente, é um indício de que o centro de gravidade do homem está fora dele: a Causa primeira e o Fim último de sua existência, sua origem primeira e seu destino definitivo, o transcendem infinitamente. Seu ser só pode vir do Ser ou Existência necessária e infinita e, por isso mesmo, tampouco seu Fim ou Bem supremo pode ser outro que esse mesmo Ser infinito.
Desde então, não só sua realidade substancial como sua mesma atividade específica espiritual e, por essa, toda sua vida só se libera do não-ser da limitação na medida em que, transcendendo os limites da sua própria imanência ôntica, se enriquece com a possessão do ser transcendente - identificado com a verdade e o bem - em direção ao Ser transcendente - Verdade e Bem - infinito, que lhe confere sua própria e imanente plenitude.
Desde então, o caminho de perfeição do homem aparece como uma subordinação e ordenação ao ser transcendente, recorrido com esforço até a penetração do ser transcendente, na sua imanência infinita. Com o ser, penetra no homem a perfeição, a verdade e o bem.
Submetendo-se a tal ordenação até seu último Bem ou Ser transcendente divino, através do ser ou bem das coisas e do mundo, o homem não só permanece ele mesmo articulado e centrado no término definitivo de sua perfeição e no caminho até ela, como que nele cobram sentido e se ordenam as coisas em um plano hierárquico: a realidade material serve ao seu ser corpóreo, seu corpo à sua vida vegetativa, essa à sua vida consciente material ou sensitiva e essa, por sua vez - e por ela as anteriores - à sua vida espiritual. Todo o inferior ao homem como tal fica assim subordinado e integrado nele, e por ele, à ordem divina. Porque por este último trecho de seu ser e vida espiritual, que o coloca em seu ser específico e acima de todo ser material, o homem se abre à transcendência do ser - verdade e bem - e, em definitivo, à transcendência do Ser de Deus, Bem infinito em cuja posse se aperfeiçoa e atualiza plenamente em sua própria imanência. E, ao encontrar seu definitivo destino divino, além do seu próprio ser e atividade, o homem, subordinando-se a Deus como a seu Bem ou Fim supremo, encontra o caminho da própria perfeição ôntica: o caminho da verdade e o caminho do bem moral ou especificamente humano. Chegando a Deus como Verdade suprema, descobre a verdade e o sentido recôndito das coisas. Chegando a Deus como a seu Bem supremo, descobre a norma moral que canaliza sua atividade livre até sua perfeição junto com o motivo último de sua submissão à ela. E, pelo homem assim ordenado em busca de seu Fim divino, no caminho até sua perfeição, a verdade e o bem, todas as coisas inferiores - e ainda os aspectos subalternos de seu próprio ser - enquanto a ele se subordinam são conduzidos à sua própria perfeição, à plenitude do seu próprio ser. Cegas para descobrir e encaminharem-se a si mesmas ao seu último Fim divino, submetidas e servindo ao homem, consciente e livremente subordinado a Deus, seguem o caminho até aquele definitivo destino.
Nessa mesma subordinação ao Ser transcendente, encontra ele a norma moral, que o vincula com deveres e direitos frente aos demais homens individual e socialmente considerados.
Deus se apresenta, assim, desde sua transcendência infinita, como a pedra angular que sustenta não só como Causa primeira, mas também como Fim ou Bem supremo, todo ser em si mesmo e em sua atividade: o mundo e o homem. A ordenação hierárquica do mundo material ao espiritual, e do homem à verdade e ao bem e, em geral, à sua perfeição específica pela trilha corpórea e espiritual, pela via intelectiva e volitiva moral - contemplação e ação - assim como a organização social dos homens entre si está condicionada e sustentada, desde a transcendência, em Deus, pelo reconhecimento e submissão ao Ser divino e à sua Lei eterna que é, por isso, a Lei do aperfeiçoamento do homem e, pelo homem, das coisas. A palavra de Deus: Servire Deo regnare est, tem cumprimento ainda na ordem puramente temporal ou filosófica.
Se o homem natural deixa de apoiar seu ser e atividade no ser transcendente e, em definitivo, no Ser de Deus, toda essa ordem ontológica se desarticula e se derruba, toda essa hierarquia ôntica se desvanece e é substituída pela anarquia das forças cegas saídas de seu canal racional; e o homem perde o caminho de sua perfeição, da verdade e do bem, desaparecido em seu ser finito e contingente, sem sentido, sem razão de ser, contraditório em si mesmo, despojado de toda norma de verdade para sua inteligência e de bondade para sua vontade livre; o mundo material se torna opaco e absurdo, perde sua subordinação ao homem, desde que ele perdeu a sua para com Deus, quem dava razão de ser e sentido a toda essa articulação orgânica e hierárquica do ser; e a ordem jurídica, que nutre suas raízes nas fontes da moral, é despojada de seu fundamento e fica reduzida e substituída por uma ordem puramente mecânica e de força do Estado.
Por todo lugar [reina] a desordem, a imperfeição, a ignorância, a destruição e o mal.
3. Na Idade Moderna, o homem sucumbiu paulatinamente à tentação de independência e tentou desfazer-se gradualmente de sua essencial submissão e de articulação no ser e de suas exigências ontológicas, substituindo uma ordem hierárquica, dependente e sustentada em Deus, por uma suposta ordem de absoluta liberdade, de independência de todo vínculo estabelecido e exclusivamente dependente do próprio homem.
Mas o homem esqueceu que nessa subordinação e, em última instância, a Deus, seu ser finito e contingente encontrava o fundamento de sua própria perfeição e das coisas a ele ordenadas, sua defesa e, com esse acréscimo de seu ser e de sua vida, o caminho até sua autêntica liberdade: do domínio sobre as paixões e sobre sua própria atividade, assim como sobre as coisas a ela submetidas, e a ordem com os demais homens em uma sociedade organicamente estruturada. Em uma palavra: a ordenação de seu próprio ser e de sua atividade dentro de si e dentro de uma ordem ontológica total. Ao tentar romper os vínculos com a transcendência do ser divino sob o pretexto de conquista do seu próprio ser humano e independência, de fato [o homem] se privou de sua própria defesa e perfeição e introduziu o princípio de dissolução e, com ele, de sua própria escravidão e desamparo frente aos demais e às forças cegas do instinto e da matéria.
Desarticulado da fonte ontológica de sua perfeição e da perfeição do mundo, o homem perdeu em seu conhecimento a visão integradora da realidade total e, na sua vontade livre, a norma e perfeição moral e, por conseguinte, o fundamento da convivência social. O homem começou arruinando-se como homem, em sua vida especificamente humana.
Mas o processo de desintegração crescente, que se inicia daquele princípio equivocado, não se deteve nas camadas superiores da vida e do ser humano; penetrou mais fundo até desarticular os seres e forças materiais do domínio do homem, assim como privar o mesmo da segurança de sua existência e vida material.
O antropocentrismo renascentista quis desatar as forças materiais, descobriu suas leis e aprendeu a dominá-las e manejá-las. E com seu mesmo uso chegou paulatinamente até descobrir e assumir o controle sob as forças mais poderosas do mundo inorgânico, até a desintegração do átomo. Porém, essa mesma cosmovisão que alentou e favoreceu o progresso científico, sempre através do mesmo princípio de desvinculação do ser transcendente, de Deus, em última instância, careceu do poder integrador de tais descobrimentos e frutos da ciência no bem específico do homem, da subordinação do uso de tais forças à norma moral ou de aperfeiçoamento humano, precisamente porque essa se funda em Deus. Toda a atividade humana perdeu, assim, seu centro de gravidade, sua norma e princípio de perfeição específica e, desse modo, sucessivamente se amoralizou em suas diversas ordens: a filosofia, a arte, o direito, a economia, a ciência e a técnica. Primeiro foi a independência ou laicização da filosofia, logo da moral e do direito e da economia, depois da arte e, finalmente, da ciência e da técnica. O homem desatou sucessivamente as forças naturais - a desintegração do átomo assinala seu cume -; mas, quando se cria dono dessas forças e fortalecido em seu poder material com elas, é aqui que se encontra impotente para dominá-las e submetê-las ao seu próprio bem. Desarticuladas da moral - que é o mesmo que dizer: do princípio de perfeição humana ou, mais brevemente, do bem do homem - tais forças cegas e infinitamente superiores à força física do homem se voltam agora contra ele e ameaçam destruir sua mesma existência e as condições de sua possibilidade sobre a terra.
É assim, como por um processo de descomposição - implacável e cego como a matéria, de cujo determinismo brota, uma vez apodrecido seu vínculo de subordinação à atividade espiritual e livre do homem - este, que ilusoriamente creu que, desarticulando-se e insubordinando-se contra Deus e, com Ele, de toda norma e sujeição, iria encontrar-se mais plenamente dono de si mesmo e encontrar sua inteira liberdade sobre si e o domínio do mundo material, esquecendo-se que não é a plenitude do ser, que não é Deus, mas apenas ser finito e contingente e, como tal, dependente de Deus para todo o seu bem autêntico; privou-se realmente do princípio e fundamento de sua própria perfeição, fechando todos os caminhos de sua íntima ascensão, condenou-se ao desamparo e aniquilamento, primeiro em sua interioridade espiritual, e logo em sua própria vida material, abandonado a um mundo social anarquizado que o despedaça, sem proteção de seus direitos frente aos demais e ao Estado e a um mundo material de forças desatadas e desarticuladas das normas morais e humanas, que ameaçam aniquilá-lo totalmente.
E encaremos esse homem que, sonhando em sua humanização e liberdade absolutas, morre agora de inanição humana, quebrada a comunhão com a fonte transcendente divina que o alimentava em sua própria vida imanente, sem rota em sua vida intelectiva, rodeada de erro e de ignorância nos problemas fundamentais de sua existência - o quê somos, de onde viemos e para onde vamos - sem norma moral para conduzir-se a si mesmo até sua própria perfeição e se vincular com os demais homens em uma sociedade orgânica e submeter as forças materiais ao seu próprio bem; submetido, desse modo, à sua ignorância, às suas paixões, à violência dos demais e à brutalidade das forças cósmicas.
O resultado não pode ser mais paradoxalmente desastroso frente o tentado em seu começo. E, porém, devemos confessar, este trágico término estava eviscerado naquelas desgraçadas premissas essenciais de independência frente ao ser e, em definitivo, frente a Deus.
O interior da catedral de Metz, com seus arcos e pedras angulares que os sustentam, assim como todo o edifício humano, dependente de Deus |
4. As autênticas conquistas do direito, da economia, das ciências matemáticas e indutivas, da arte e da técnica perderam sua unidade orgânica, sua integração e subordinação ao homem, desenvolveram-se com inteira independência e, desarticuladas inteiramente desse, desumanizaram-se e se anarquizaram precisamente porque, ao desarticular-se de seu Fim supremo e divino, o homem perdeu o sentido de sua própria vida e o fundamento supremo e princípio de toda a ordem hierárquica, removeu a pedra angular que sustentava o magnífico edifício da organização que durante séculos foi elaborada durante a Idade Média e deu luz à cultura ocidental. Partindo de um mundo desorganizado e análogo ao nosso, sob o alento e direção de uma concepção teocêntrica e aproveitando os restos em decomposição da cultura antiga, o Cristianismo conseguiu lhes infundir um novo espírito e forjar assim uma ordem orgânica, que deu origem à cultura greco-latina-cristã, à Cristandade, à Europa.
Com todas as suas deficiências e limitações, essa cultura, cimentada, alimentada e organizada sobre o ser ou bem e, definitivamente, sobre o Bem supremo, submetendo o homem às exigências normativas desse último Fim transcendente, encaminhou-o pela trilha de sua própria perfeição e submeteu a ele todos os estratos inferiores do ser e atividade, incorporados na ordem humana. Perdendo-se em Deus, encontrou-se plenamente a si mesmo e encontrou o sentido de seu ser e atividade no tempo e na eternidade, e a submissão hierárquica dos aspectos inferiores do próprio ser e atividade do homem e dos seres exteriores a ele: a integração de todas as coisas no homem e do homem em Deus.
5. O desamparo do homem atual frente a suas próprias criações da arte, da economia, do direito, das ciências e da técnica, desarticuladas e adversárias da perfeição humana a que essencialmente estavam dirigidas, assim como perante as forças materiais desatadas por essa ciência e técnica, e sobretudo seu íntimo e interior desamparo em sua vida específica, em sua inteligência e vontade, desarticuladas de seu próprio objeto e Bem infinito e condenadas, assim, à esterilidade e autodestruição - desamparo do qual se deriva aquele primeiro - só tem uma saída: a reintegração da vida e do ser espiritual humano em seu verdadeiro último Fim transcendente, em Deus e, por ela, o reencontro do caminho da verdade para a inteligência e da norma moral para a vontade livre, a reintegração de toda a sua atividade e ser inferior, e das coisas e forças exteriores subordinadas àquela, a seu próprio bem especificamente humano.
Precisamente porque somos de e para Deus, reconhecendo nossa origem divina e ordenando-nos a Deus como a nosso supremo Bem, encontramo-nos e realizamo-nos plenamente como homens e, quando fazemos isso, reconhecendo que somos de e para Deus, as coisas, por sua vez, encontram seu próprio destino e perfeição no serviço e subordinação ao homem. Omnia vestra sunt: vos autem Christi, Christus autem Dei (I Cor. III, 23).
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