segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O tempo fugaz, o homem imperfeito e a Verdade imutável

Mais um ano se encerra. 2018 anos desde a vinda de Cristo já se passaram. Há dois mil anos, o verdadeiro Deus e verdadeiro Homem é ainda um simples carpinteiro na Palestina; aprende o ofício com seu pai, o justo São José. O maior Império da época tentará destruir os gérmens da Religião por Ele pregada, que cresce extraordinariamente no embalo das peregrinações dos “pescadores de homens”. Há mil e quinhentos anos, a Europa observa a ruína do mesmo Império que começara como uma pequena vila agropastoril no Lácio, e as hordas dos chamados bárbaros se apoderam dos seus territórios. Difícil missão trazê-los à Luz da Verdade, que alcança sucesso inimaginável. Há mil anos, ao passo que enfrenta os ataques e pilhagens de escandinavos e sarracenos, a Cristandade começa a tornar-se fato consumado graças ao empenho dos monges, restauradores da fé, da cultura e até mesmo da economia no Velho Continente. 

Há quinhentos anos, a Revolução de Lutero abala a Europa, enquanto as Américas, bem como partes da África e Ásia, começam a receber a Luz da Boa Nova graças a duas pequenas nações que, não satisfeitas com o pequeno espaço que a Providência lhes reservara na Península Ibérica, navegam pelos oceanos e mares bravios com o auxílio da mesma Providência para conquistar mais que terras: almas, e aos milhões. Muito além das riquezas terrestres, acumularão riquezas no Céu. A própria Virgem Maria descerá ao Tepeyac e sua imagem aparecerá posteriormente no rio Paraíba, tornando-nos herdeiros daquela mesma Cristandade que se esfacelava diante do monge rebelde e seus asseclas. 

Há dois séculos, o mundo experimenta, em diferentes graus e sob diferentes formas, os efeitos trágicos da Revolução liberal francesa, inspirada pelo enciclopedismo iluminista. Novamente, não faltam aqueles que se insurgem contra a nova ordem, verdadeira desordem, da sociedade: Alguns nobres, sacerdotes fiéis a Deus e ao rei e camponeses que preferem a liberdade e fraternidade concreta sob a égide cristã ao invés da criação abstrata revolucionária levantam-se nas regiões interioranas do noroeste francês. Há um século, o mundo vê horrorizado os primeiros desastres da Revolução Comunista na Rússia. A Igreja levanta-se, uma vez mais, contra o totalitarismo ateu e, décadas depois, contra a falsa oposição também totalitária, e pagã. Concomitantemente, ocorre o fim de uma guerra brutal que supostamente acabaria com todas as guerras. Vã ilusão de um mundo secularizado, destroçado pela filosofia moderna e seus múltiplos enganos: crer no primado da paz tendo expulsado o Príncipe da Paz. 

Há meio século, a tecnologia avança como nunca: o mundo torna-se cada vez menor frente à velocidade das comunicações e dos transportes, o homem está prestes a visitar a Lua e a tensão da Guerra Fria faz-se presente. Na Igreja, modernistas e comunistas se infiltram e parecem, por vezes, triunfar. Mas Deus nos lembra da Sua Promessa de que “as portas do inferno não prevalecerão contra Ela” e homens fiéis à Tradição Católica combatem o inimigo com a coragem de leões. Novas revoluções vêm à tona, erros antigos repetidos à exaustão contra a Verdade sob a aparência de novidade seguem na vã tentativa de derrotar o Vencedor, cindindo a ordem natural da sobrenatural e, como consequência, desordenando aquela mesma ordem. 

Curioso é observar a relação do homem com o tempo na longa história dos séculos: esse ser imperfeito, com o intelecto sujeito a enganos e a vontade sujeita a desânimos parece querer assenhorar-se do relógio. Deveria aprender que o homem não é sequer senhor de si mesmo. Completa-se quando se subordina ao Sumo Bem, à Perfeição que é Deus, O qual tudo criou e jamais foi criado. Afastado dEle, o homem tem pressa. Economizar o tempo através do avanço tecnológico, da energia elétrica, do carro, do avião, das redes sociais: este é seu objetivo. Tenta, ao viver atarefado no mundo, economizando e ocupando o tempo para auxiliar o progresso material, fugir do inexorável destino de toda criatura: a morte. Assim ocorre com os vegetais, com os animais brutos e conosco. Cedo ou tarde, a natureza decaída virá cobrar seu soldo. Que importa, então, controlar o tempo? 

Longe de cair no engodo niilista, desesperançado e, por isso mesmo, desgraçado. O que diferencia o homem dos demais animais é possuir uma alma racional, que viverá eternamente e que, após a ressurreição dos corpos, estará junta ao corpo com o qual passou nesta terra. Os caminhos apontam para a Felicidade ou a condenação. Sabendo que está distante de Deus, o homem moderno foge da morte como o diabo foge da Cruz. Em meio a tantos afazeres e distrações, ele se esquece de cuidar da própria alma, o bem mais precioso que o Criador deu a cada um de nós. 

Ainda que a noção da condenação nos assole, razão não temos para temer com tal pavor que fiquemos desesperados. Assim como a história mostra a criatura humana, andarilha numa terra que lhe pertence apenas por algum tempo, sempre pequeno, ainda que Deus estabeleça quão pequeno é com ligeira diferença para uns e para outros, mostra-nos ainda o seguinte: não importa o quanto o mundo gire ou quantas revoluções estourem, a Cruz continua a mesma. A Verdade é imutável, indestrutível e imperecível. Não se veste com as roupagens das modas nem caminha conforme os tempos: continua sempre invicta, resistente e intacta. 

Que aparentemente seja derrotada não é coisa nova: a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz também pareceu derrota aos olhos do mundo. Bem sabemos que, na verdade, ela feriu mortalmente a verdadeira morte: a do pecado. E Cristo vence, Cristo reina e Cristo impera. Quanto aos Seus seguidores, à palma das torturas e do martírio, físico ou não, segue-se a coroa da Glória. Loucura para os pagãos, essa é a linguagem da Cruz: escrita com Sangue Inocente que redime o homem, germina e dá inúmeros frutos em todo o orbe terrestre. 

Os anos vêm e vão na longa aventura humana. Não faz essencial diferença àquele que sabe o que lhe espera e busca a Verdade com um coração sincero a todo instante, no presente. É um novo ano de combate à carne, ao mundo e ao demônio. É um novo ano para ganhar o Céu. É um novo ano para entronizar este Rei que é Cristo no coração e, sobre a base de uma sólida vida privada, dar testemunho dEle na vida pública. Que tenhamos todos consciência de tal dever, para que não sejamos escravos do tempo e deixemos para depois, tal como aqueles que acreditam serem senhores do relógio quando Deus o tem nas mãos, aquilo que pode ser feito hoje para a nossa salvação e do nosso próximo.

Temperança. Retidão. Coragem. Fé. Uma estátua que traduz a atitude do homem que ama a Verdade em relação aos tempos e seus costumes.

sábado, 29 de dezembro de 2018

Valores eternos

Comentário do jurista José Pedro Galvão de Sousa publicado na revista Reconquista, vol. I, nº 2 (1950). Asteriscos meus, notas do autor.


Família rezando a Ave-Maria ao cair da noite. Pintura de Ferdinand G. Waldmüller.

Dizer-se tradicionalista nos dias que correm não é para os cortejadores da aura popular, para os espíritos impressionáveis que reduzem o futuro do mundo às vinte e quatro horas do dia seguinte.

Estes hão de preferir outro vocabulário político. Serão os homens da "democracia", do "socialismo", do "progressismo" (1). Depois das últimas eleições inglesas talvez tenham deixado de ser os homens do "trabalhismo", se é que perceberam o verdadeiro alcance daquele pleito.

Tradicionalismo, para eles, é igual a passadismo. É puro conservadorismo. É pura utopia. Para não falar já dos que grosseiramente o confundem com os nacionalismos totalitários.

Procuram as vantagens do momento. Fazem a política do êxito imediato. Acomodam os ideais às circunstâncias, sacrificando muitas vezes a pureza daqueles às exigências inexoráveis destas.

Tudo isto podia dar muito certo - no ponto de vista em que se colocam - numa época pacatamente burguesa, como a Europa de antes de 14 ou o Brasil antes de 30.

Mas hoje tal imediatismo ilusório nem sequer permite colher, por algum tempo que seja, os frutos desejados. Os acontecimentos se precipitam, a guerra atômica tolda os horizontes com a sua terrível ameaça e o realismo soviético zomba dos seus cândidos adversários.*

Em meio a essa pavorosa confusão mental, dizer-se tradicionalista é necessariamente afrontar os ídolos do tempo. Mas é também considerar os fatos sub specie aeternitatis. É fazer a política da verdade histórica. É ser intransigente na defesa de um ideal, aguardando a hora em que a Providência permita a sua plena realização, sem concessões nem meias tintas. 

Não se trata propriamente de conservar. Há tanta coisa errada que precisa desaparecer! Não se trata de voltar atrás, pois a história não é uma fila de cinema que se possa fazer correr em sentido contrário. Contemplar beatificamente o passado seria recursar-se a qualquer ação sobre o presente e o futuro. Trata-se, como escreve Gustave Thibon, de "um retorno não ao passado como tal, mas aos valores eternos que floresceram nas melhores épocas do passado".

Esses valores eternos são elementos permanentes na organização dos povos. Repudiá-los é ferir a ordem social e humana nos seus princípios fundamentais, é por isso mesmo abrir a porta às crises insolúveis. Há uma política natural fora de cujos preceitos as sociedades se desencaminham e caem na anarquia. As prerrogativas inalienáveis da criatura humana, o caráter sagrado da família, a autonomia dos grupos sociais em face do Estado, tudo isso são princípios que floresceram em determinadas épocas com maior viço, e que hoje se acham comprometidos ou mesmo suprimidos por completo. 

Restaurar as condições que possibilitem a sua nova florescência não é retroceder no curso da história. É receber da História as lições de "política experimental" que ela sabiamente nos oferece.

Pretender construir o mundo novo de amanhã sem esse lastro de experiência é o mesmo que edificar sobre areia ou divagar através das nebulosidades da "política abstrata". (2)

E qual a primeira restauração a promover?

A restauração espiritual. A volta à verdade católica. O restabelecimento do primado da ordem sobrenatural.

O homem não vive só no estado de natureza. Elevado ao plano sobrenatural, aí encontra a perfeição do seu ser. Cindir a ordem natural e a sobrenatural é mutilar o homem. E organizar as sociedades como se o homem se movesse somente no plano da natureza é deixá-las na perpétua desorganização a que as atirou o Estado leigo.

Atendam os povos e não só os indivíduos ao apelo do Sumo Pontífice para o grande Retorno, feito ao ser promulgado o presente Ano Santo.

Só o retorno aos valores eternos, aos valores da Tradição - que constituem, como diz Francisco Elías de Tejada, em artigo inserido neste número**, a "medula dos povos" - só esse retorno poderá salvar a humanidade.

Retorno que será Reconquista: a reconquista de valores florescentes outrora e perdidos nos descaminhos por onde vagueiam sem norte os povos modernos. 


NOTAS E ASTERISCOS 

(1) O verdadeiro progresso se fundamenta na tradição, pois é fruto dos esforços das gerações que nos precederam. Quanto à democracia, deixou de ser a efetiva participação do povo no governo para se transformar no absolutismo de uma fictícia "vontade popular". É nas lições do tradicionalismo político que se encontram os rumos de uma autêntica democracia. 

(2)  La Tour du Pin dizia que, com a Revolução Francesa, termina a fase do direito histórico e se inicia a do direito abstrato. Digamos o mesmo da política. 

*Lembremos que o autor escreve no ano 1950, em plena Guerra Fria.
**La Lección Política de Navarra, publicado também na revista Reconquista, vol. I, nº 2. 

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"A Tempestade no Mar da Galileia", de Rembrandt Não sou um exímio especialista na Crise da Igreja, não sou teólogo ou filósofo, nã...