quarta-feira, 17 de abril de 2019

"Amigo, a que vieste?"


Breve reflexão sobre a Divina Misericórdia e o sacramento da penitência com base nos ocorridos da Quinta-Feira Santa

Ilustração de Gustave Doré 

Naquela fria e enevoada noite no Getsémani, o Horto das Oliveiras, Nosso Senhor Jesus Cristo padecia de mortal agonia ao antever os sofrimentos que cairiam sobre Sua Santíssima Carne em algumas poucas horas para a Redenção dos homens. Uma vez que tal sofrimento já estava presente desde o momento de Sua Encarnação na Imaculada e Sempre Virgem Maria, podemos conjecturar que foi aumentando exponencialmente até chegar a fatídica noite de Quinta-Feira e a madrugada da Sexta-Feira Santa, após Jesus ter instituído a Eucaristia e o sacramento da Ordem, reunido com Seus apóstolos na Santa Ceia. 

Se nós ficamos ansiosos e sofremos por antecipação em relação às menores situações da vida, o que dizer sobre a incomparável agonia de Cristo naquele instante, quando sabia perfeitamente quando e como cada um dos socos e bofetadas, cada um dos açoites e suas cruéis pontas de ferro, como cada um dos espinhos, dos cravos e cada uma das farpas da Cruz atingiriam Seu Santo Corpo? O próprio Senhor nos revela: "E, tomando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes, então: 'Minha alma está triste até a morte. Ficai aqui e vigiai comigo'." (Mt. 26, 37-38).

Essa tristeza mortal certamente era ocasionada, para além do conhecimento de todos os sofrimentos físicos, pelo fato de amar infinitamente cada um daqueles que O maltratariam. Como disse São Francisco de Assis, "o Amor não é amado". Se dói para um pai ser rejeitado, ultrajado e ofendido pelo filho, quanto maior é a dor de Cristo, cujos laços com cada um dos homens são incomensuravelmente mais estreitos. E Jesus não apenas seria rejeitado por aqueles homens distantes, os pagãos romanos e os pérfidos judeus inconversos, mas por Seus discípulos mais próximos: São Pedro O negaria três vezes; quase todos, à exceção de São João, fugiriam e desapareceriam covardemente; Judas O trairia por míseras 30 moedas de prata. 

Vejamos especificamente o caso deste último, por ora. Nosso Senhor tinha pleno conhecimento de todas as dores que padeceria, tanto físicas quanto psíquicas; e essas dores seriam ocasionadas pela traição de Judas, e engana-se aquele que crê que Cristo não perscrutava o coração do traidor. Sabia exatamente quem o trairia, como, onde e quando isto se daria. 

Qualquer um de nós, quando nos deparamos com um conhecido que nos maldiz ocultamente, que não nos aprecia e até mesmo nos maltrata, rapidamente providenciamos a exclusão de tal pessoa de nossos círculos sociais. O menor contato possível com o adversário é um alívio, a melhor forma de manter a tão almejada paz. 

Jesus não. Judas esteve em Sua Presença até o princípio da Santa Paixão. Nosso Senhor jamais o expulsou e teve sempre presente todas as amarguras que esse discípulo Lhe traria. Entretanto, teve paciência: manteve-se próximo do pecador até que esse Lhe rejeitasse por completo e traísse o sangue inocente. 

Cristo faz o mesmo com cada um de nós, trata-nos com paciência e compaixão, possibilitando a nós todas as chances de nos agarrarmos à Graça de Deus e salvarmos nossa alma, o bem mais precioso do homem, ainda que lamentavelmente esquecido. E, se Nosso Senhor desaparece do nosso coração, não é porque deixou de nos amar, mas porquê nós O amamos pouco e O crucificamos novamente por inúmeras faltas.

Mas a Sagrada Escritura nos lembra de que há duas posturas perante a miséria do pecado: a primeira postura retratada é a de São Pedro, a segunda é a postura de Judas. Comecemos analisando a segunda, uma vez que conecta-se perfeitamente aos parágrafos anteriores. 

Sabemos que Deus não quer "a morte do ímpio, mas que o ímpio se converta de seu caminho, e tenha a vida" (Ez. 33, 11), que "a maldade do ímpio não o prejudicará, desde o dia em que se converta de sua impiedade” (Ez. 33, 12), e que "se o ímpio fizer penitência de todos os pecados cometidos; se guardar todos os Mandamentos [de Deus]; se proceder com equidade e justiça: é certo que terá a vida" (Ez. 18, 21). Haveria, portanto, perdão para o pecado de Judas, ainda que fosse o maior de todos.

Como o ímpio deve buscar a Deus? Também nos mostra a Sagrada Escritura: "Quando buscares o Senhor teu Deus, encontrá-lO-ás, contanto que O busques de todo o teu coração, e com toda a angústia da tua alma" (Deut. 4, 29) e "Buscar-Me-eis, e haveis de achar-Me, se Me procurardes de todo o vosso coração. Então, deixar-Me-ei encontrar por vós, diz o Senhor" (Jer. 29, 13-14). É certo que Judas ficou angustiado pelo pecado que havia cometido, "tomado de remorsos" (Mt. 27, 3).

Ora, se havia perdão para o pecado de Judas e se o mesmo ficou repleto de remorso, por quê não obteve perdão? Pois não buscou a Deus de todo o coração, como nos ensina as passagens supracitadas, nem confiou na Misericórdia Divina, desesperando-se da salvação e tirando a própria vida. 

Eis a primeira postura perante o pecado: a postura de Judas, verdadeiramente demoníaca por não confiar no Bom Deus que enviou Seu Próprio Filho para nos redimir através de dolorosíssima Paixão, por total liberalidade e misericórdia, uma vez que não é Ele que precisa do homem, mas o contrário. Passemos agora à segunda postura perante o pecado: a postura de São Pedro.

De comportamento enérgico, São Pedro disse com firmeza que jamais negaria Cristo, e que se fosse necessário morreria com Ele. Entretanto, quando perguntado pelos criados da casa do Sumo Sacerdote se conhecia Nosso Senhor e se andara em Sua companhia, negou três vezes. Pecado sem dúvida enorme. Jesus já advertira diversas vezes o que Lhe sucederia, inclusive imediatamente antes de se encaminhar com os apóstolos para o Jardim das Oliveiras: "Disse-lhes então Jesus: 'Esta noite serei para todos vós uma ocasião de queda; porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho serão dispersadas [Zc. 13, 7]. Mas, depois da minha Ressurreição, eu vos precederei na Galileia'." (Mt. 26, 31-32). O Príncipe dos Apóstolos dissera que jamais O negaria e, vendo-O completamente desamparado, cuspido, esbofeteado e ofendido de todas as formas, abandonou-O.

Porém, eis agora a essencial diferença entre Judas e São Pedro: "Pedro recordou-se do que Jesus lhe dissera: 'Antes que o galo cante, tu me negarás três vezes'. E saindo, chorou amargamente" (Mt. 26, 75). Ele fez como o salmista: "Estou fatigado de tanto gemer. Todas as noites, lavo meu catre com lágrimas" (Sl. 6, 7), e sabia que o resultado disto seria o seguinte: "O Senhor escutou o clamor do meu pranto" (Sl. 6, 9). Como lembrou-se da palavra que o Senhor lhe dirigira pessoalmente, lembrou-se do que dizem as Escrituras, a mesma palavra de Deus: "Convertei-vos a Mim, de todo o vosso coração, com jejuns, com lágrimas, com lamentos. E rasgai vossos corações" (Jl. 2, 12).

São Pedro teve uma contrição perfeita, confiando plenamente na Misericórdia de Deus, a ponto de dar a sua vida por Cristo posteriormente. O apóstolo covarde tornou-se corajoso, crucificando seus vícios e seus temores humanos junto a Nosso Senhor e confiando plenamente nEle. 

Nessa Semana Santa, façamos como São Pedro, confiando integralmente na Bondade Divina. Como São Paulo, perguntemos a nós mesmos: "Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas que por todos nós O entregou, como não nos dará também com Ele todas as coisas?" (Rom. 8, 33). Nada pode nos separar do Amor de Deus, apenas o pecado. E para o pecado há perdão, não sete vezes, mas setenta vezes sete (Mt. 18, 22). Com a confiança de que Deus é "o remunerador daqueles que O procuram" (Heb. 11, 6), procuremos um sacerdote e realizemos uma boa confissão, para que recuperemos com toda a força a saúde da alma.

Com total certeza na vitória de Cristo sobre a morte na Ressurreição, também esperemos a Vitória, desde que tenhamos um firme propósito de emenda e façamos o que a Santa Igreja nos pede. "Se morrermos com Ele, com Ele também viveremos. Se perseverarmos no sofrimento, havemos também de reinar com Ele" (2 Tim. 2, 11).

Cristo nos espera ansiosamente, como esperava Judas no Getsémani. Nosso Senhor nos dirigirá as mesmas palavras que dirigiu ao traidor: "Amigo, a que vieste?" (Mt. 26, 50). Que nossa resposta seja diferente daquela de Judas, desta forma: "Senhor, não vim trai-lO, não vim para entregar o Sangue Inocente, mas para entregar-me inteiramente a Vós. Sois meu amigo, mais verdadeiro e mais fiel que todas as amizades terrenas, e em Vossa Presença quero estar por toda a Eternidade. Pela Vossa Misericórdia, aceitai novamente este filho pródigo que chora amargamente, da mesma forma que São Pedro uma vez chorou e recebeu o perdão. Assim como ele lembrou-se do clamor do salmista, também eu digo: 'Não desprezareis, ó Deus, um coração contrito e humilhado' (Sl. 50, 19)".

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