quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Como costumamos rezar?

Refletindo acerca do início da Paixão do Senhor no Horto das Oliveiras, São Thomas More nos adverte sobre o modo como oramos em seu De Tristitia Christi*


Cristo no Getsémani, por Heinrich Hofmann (1886)

Para ensinar que no perigo ou na dificuldade que se acerca devemos pedir a outros que vigiem e que rezem, colocando, ao mesmo tempo, nossa confiança somente em Deus, e também com a intenção de mostrar que Ele tomaria o amargo cálice da Cruz sozinho, sem nenhuma companhia [1], ordenou àqueles três apóstolos [Pedro, Tiago e João], que Cristo havia escolhido entre os onze e levado ao pé do monte, que ficassem ali, firmes e vigiando com Ele; mas Ele próprio se afastou, tomando a distância de um tiro de pedra [2]: "Adiantou-se um pouco e, prostrando-se com a face por terra, assim rezou: 'Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia, não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres'." [3]

O que nos ensina primeiramente Cristo Rei a quem queira lutar por Ele, e com Seu próprio exemplo, é a virtude da humildade, fundamento das demais virtudes e que permite almejar os objetivos mais altos com segurança. Sendo Cristo, enquanto Deus, igual ao Pai, se apresenta perante Deus Pai humildemente por ser também homem, e assim se prostra no solo [4].

Paremos brevemente, leitor, neste lugar para contemplar com devoção nosso Rei, prostrado em terra nessa atitude suplicante. Se o fizermos atenciosamente, um raio daquela luz que ilumina todo homem que vem a este mundo [5] iluminará nossas inteligências e veremos, reconheceremos, e tomaremos as dores e, em algum momento, chegaremos a corrigir não a negligência, a preguiça ou a apatia de nossa vida, mas a debilidade, a estupidez total, a idiotice ou insensatez com a qual nos dirigimos a Deus Todo-poderoso. Ao invés de rezar com reverência, nos acercamos Dele relutantemente, preguiçosamente e quase adormecidos; temo muitíssimo de que assim não só não O satisfazemos e não ganhamos Seu favor, como também O irritamos e até mesmo provocamos seriamente Sua ira.

Seria muito desejável que, vez ou outra, fizéssemos um esforço especial, imediatamente depois de acabar um momento de oração, para trazer de novo à memória tudo o que pensamos durante o tempo no qual estivemos rezando. Que loucuras e tolices veríamos ali? Quanta distração vã - e, algumas vezes, até asquerosidades - poderíamos perceber? Ficaremos verdadeiramente assombrados ao percebermos que tudo isso fora possível; de que, em tão curto espaço de tempo, pôde a imaginação dissipar-se por lugares tão díspares e distantes entre si; ou por tantos assuntos e coisas tão variadas como carentes de importância. Se alguém (como quem faz um experimento) se esforçasse para distrair-se no maior grau possível e da maneira mais desordenada, estou seguro de que não conseguiria fazê-lo tão bem como de fato faz nossa imaginação quando, deixada livre, desvaria por todas as partes enquanto a boca murmura as horas do Ofício e outras orações vocais muito utilizadas. 

Assim, se alguém se questiona ou tem alguma dúvida sobre a atividade da sua mente enquanto os sonhos conquistam a consciência ao dormir, não encontro melhor comparação que esta: a mente se ocupa da mesma maneira que se ocupam as mentes daqueles que estão despertos (se é possível dizer que estão "despertos" os que rezam dessa forma), mas cujos pensamentos vagam descontroladamente durante a oração, agitando-se impetuosamente sobre fantasias absurdas. Mas há uma diferença em relação ao que sonha dormindo, pois algumas das estranhas visões do que sonha desperto (rezando) e que sua imaginação abraça em suas viagens enquanto a língua corre pelas orações como se fossem sons desprovidos de sentido [6] são monstruosidades tão sujas e abomináveis que, se tivessem sido vistas dormindo, certamente ninguém, por mais desavergonhado que fosse, atreveria-se a contá-las ao despertar, nem sequer entre um grupo de descarados. 

E o velho provérbio é, sem dúvida, verdadeiro: "O rosto é o espelho da alma" [7]. Com efeito, esse estado de desordem e insensatez da mente se reflete nitidamente nos olhos, nas bochechas, nas pálpebras e nas sobrancelhas, nas mãos e nos pés; em suma, no corpo inteiro [8]. Quando nossa cabeça deixa de prestar atenção quando rezamos, ocorre um fenômeno parecido com a postura corporal. 

Pretendemos, por exemplo, que a razão para vestir trajes mais ricos que os corriqueiros nos dias de festa é o culto a Deus, mas a negligência com a qual rezamos mostra claramente nosso fracasso no intento de encobrir o motivo verdadeiro, a saber, um altivo e vaidoso desejo de luzirmos perante os demais. Em nossa negligência, andamos de um lado a outro e às vezes nos sentamos num banco. E, mesmo quando nos ajoelhamos, procuramos nos apoiar sobre um só joelho, levantando a outra perna  e descansando, assim, sobre o pé; ou colocamos uma almofada sob os joelhos e, às vezes (se somos realmente frouxos), buscamos apoiar até mesmo os cotovelos sobre uma almofada confortável. Com toda essa precaução, parecemos uma casa em ruínas prestes a desabar a qualquer momento.

No que se refere à nossa conduta, as próprias coisas que fazemos nos traem de mil maneiras, mostrando que a cabeça está ocupada em algo muito alheio à oração. Coçamos a cabeça, limpamos e cortamos as unhas e cutucamos o nariz enquanto nos equivocamos sobre o que devemos responder. Não lembrando do que nós já dissemos e do que nós não dissemos, palpitamos sobre o que resta dizer. Acaso não nos envergonha rezar num estado mental e corporal tão desordenado? Como é possível que nos comportemos assim em algo tão importante para nós como a oração? É dessa maneira que pedimos perdão pelas nossas faltas, suplicando a Deus que nos livre do castigo eterno? Mesmo se não tivéssemos pecado antes, ainda mereceríamos o tormento eterno por termos nos aproximado da majestade de Deus com tão pouco apreço. 

Imagineis, se quiserdes, que cometestes um crime de alta traição contra um príncipe ou contra alguém que tem vossa vida em suas mãos, mas tão misericordioso que está disposto a acalmar sua indignação se vos vê arrependidos e em atitude de humilde súplica. Imagineis que está decidido a comutar a sentença de morte por uma multa ou, até mesmo, a perdoar totalmente a ofensa sob a condição única de que lhe mostreis indícios convincentes de vergonha e dor. Suponde agora que, levados perante a presença do príncipe, vos adianteis e comeceis a falar sem cuidado, sem interesse algum, como a quem nada do que se passa importa; enquanto ele está quieto em seu lugar e escuta com atenção, vós vos moveis passeando de um lado a outro enquanto expondes vossa situação. Cansados de perambular, vos sentais em uma cadeira; ou, se a cortesia e a educação exige que vos rebaixeis e ajoelheis no solo, mandais primeiro que alguém venha e coloque uma almofada confortável sob os joelhos; ou, melhor ainda, lhe pedis que traga um genuflexório com mais almofadas para que apoieis os cotovelos. Então, começais a bocejar, a espreguiçar, a espirrar, a cuspir e a arrotar sem qualquer cuidado, expulsando os vapores da gula. Enfim, começais a comportar-vos de tal modo que o príncipe possa ver com clareza no vosso rosto, na vossa voz, nos vossos gestos e em toda a vossa postura corporal que, enquanto vos dirigis a ele, vossa cabeça está em coisas e assuntos muito distintos. Dizeis-me: que sucesso poderíeis esperar de tal modo de rogar?

Consideraríamos, sem dúvida alguma, absurdo e insensato nos defendermos assim ante um príncipe da terra por um delito que pede a pena capital. E um tal poderoso, uma vez destruído nosso corpo, nada mais pode fazer. Poderemos então, por acaso, pensar que estamos em nosso são juízo se, tendo nos surpreendido cometendo uma série de crimes muito mais sérios, pedimos perdão tão altiva e desdenhosamente ao Rei dos reis [9], ao próprio Deus que tem poder, uma vez destruído o corpo, de mandar corpo e alma juntos ao inferno? [10]

Não desejo que ninguém interprete o que digo pensando que proíbo rezar passeando ou estando sentado ou até mesmo comodamente deitado. Não. E, de fato, como eu gostaria que qualquer coisa que fizéssemos e em qualquer postura do corpo estivéssemos, ao mesmo tempo, elevando constantemente nossas mentes a Deus, pois é esse tipo de oração que mais Lhe agrada. Pouco importa para onde se dirigem nossos passos se nossas mentes estão postas no Senhor. Nem importa que andemos, pois nunca nos afastaremos bastante dAquele que está presente em todas as partes [11]. Mas, da mesma maneira que aquele profeta disse a Deus "quando, no leito, me vem vossa lembrança, passo a noite toda pensando em vós" [12] e não se contentou com isso, mas levantou-se "em meio à noite para render homenagem ao Senhor" [13], assim sugeriria eu que, para além daquilo que rezamos ao andar, façamos também orações para as quais preparamos nossas mentes com mais reflexão, e para as quais dispomos nosso corpo com mais respeito e reverência do que se tivéssemos que nos apresentar perante todos os reis da terra reunidos num mesmo lugar. 

Em verdade hei de afirmar que, quando penso em nossa dissipação mental durante a oração, minha alma dói e se enche de desgosto.

De qualquer maneira, não podemos esquecer que alguns pensamentos que vêm enquanto rezamos podem ser sugestões de um espírito maligno, ou vieram à imaginação pelo natural funcionamento dos sentidos. Nenhuma dessas distrações, por mais vis e horríveis que sejam, é falta grave se resistimos e a afastamos. Mas, ao contrário, se a aceitamos com gosto ou, por negligência, permitimos que cresça em intensidade durante um longo período de tempo, não tenho a mínima dúvida de que sua força pode aumentar de tal modo que seja fatalmente destrutiva à alma.

Ao considerar a glória imensurável da majestade de Deus, vejo-me obrigado a pensar que, se essas distrações da mente não são delitos puníveis com a morte, isso só se deve ao fato de que Deus, em Sua misericórdia e bondade, não quer exigir a morte por elas, porque a malícia que lhes é inerente faz com que sejam merecedoras de tal castigo, e eis a razão: não consigo imaginar como tais pensamentos aparecem na mente dos homens enquanto rezam (quer dizer, quando falam com Deus) senão por falta de fé ou porque a fé é muito fraca. Se procuramos não nos distrair enquanto falamos com um príncipe mortal sobre algum tema importante, ou com algum de seus ministros em posição de certa influência, jamais deveríamos nos distrair o mínimo que fosse enquanto falamos com Deus, não se acreditássemos com uma forte e ativa fé que estamos na presença de Deus, o qual não somente escuta nossas palavras e vê nossas feições e posturas como sinais externos do nosso estado interior, como ainda penetra nos rincões mais secretos e recônditos do coração com uma visão mais aguda que os olhos de Linceu [14] e ilumina tudo com a infinita claridade da Sua majestade. Não ocorreriam tais distrações, repito, se acreditássemos que Deus está presente, aquele Deus em cuja gloriosa presença todos os poderosos do mundo, com toda a sua glória [15], devem confessar (a não ser que estejam loucos) não serem mais que vermes depreciáveis. 

Por conseguinte, uma vez que Nosso Salvador Jesus Cristo viu que nada é mais proveitoso que a oração, e também que esse meio de salvação seria frequentemente infrutífero por causa da negligência dos homens e da malícia dos demônios - de tal maneira que, às vezes, seria pervertido em meio de destruição -, decidiu Ele mesmo aproveitar essa oportunidade, em Seu caminho para a morte, para reforçar Seu ensinamento com a palavra e com o próprio exemplo, dando os toques finais neste ponto tão necessário, assim como fez com as outras partes da Sua doutrina.

Desejava que soubéssemos bem que temos de servir a Deus não somente com a alma, mas também com o corpo, pois ambos foram criados por Ele. Quis igualmente nos ensinar que uma atitude respeitosa e reverente do corpo, ainda que tenha sua origem e caráter a partir da alma, aumenta, como em reflexo, a reverência e a devoção da própria alma para com Deus. Ele quis, assim, mostrar a mais humilde forma de sujeição e venerou Seu Pai que está no Céu com uma postura corporal que nenhum príncipe da terra ousou reclamar, nem aceitou para si quando oferecida livremente, exceto o ébrio e devasso macedônio [Alexandre] e alguns outros bárbaros que, ensoberbecidos pelos triunfos, pensaram que deveriam ser venerados como deuses.


*Tradução livre a partir da edição de Yale (New Haven e Londres) das obras de São Thomas More: The Tower Works: Devotional Writings - edição por Garry E. Haupt, 1980; e da edição espanhola La agonía de Cristo das Ediciones Rialp (Madri), preparada por Alvaro de Silva.


NOTAS:

1. Is. 63, 3.
2. Lc. 22, 41.
3. Mt. 26, 39; Mc. 14, 35-36.
4. Cf. Fp. 2, 5-7.
5. Jo. 1, 9.
6. Virgílio, Eneida 10, 640.
7. Cícero, De oratore 3, 59, 221.
8. Cf. Cícero, Pis., 1, 1.
9. Cf. 1 Tim. 6, 15; Rev. 19, 16.
10. Lc. 12, 4; Mt. 10, 28.
11. Cf. Jer. 23, 23-24.
12. Sl. 118, 62.
13. Sl. 62, 7.
14. Cf. Jer. 17, 9-10. Linceu, um dos Argonautas, era famoso pela sua visão aguda.
15. Cf. Mt. 6, 29; Lc. 12, 27.

domingo, 3 de novembro de 2019

Thomas More: Senhor até o martírio

Artigo do padre Jorge Benson para a revista argentina Gladius, ano 2, nº 6 (1986).*


Pintura de Hans Holbein retratando o santo (1527)

The field is won.” (T. M.) 

Em 1535 – fez 451 anos no último dia 6 de julho – sofria São Thomas More sua paixão, “voluntariamente aceita”. Em 1886, farão agora 100 anos, era beatificado e, em 1935, canonizado. 

Estamos, então, em um momento propício para recordá-lo e homenageá-lo. 

O que São Thomas More diz ao nosso tempo? 

O que nos pode dizer este senhor, testemunha majestosa da Fé e da Cristandade, ao nosso século que agoniza sem saber que deus adora, ao nosso mundo que quase não conhece chefes nem paradigmas? 

São Thomas More, “bom servo do Rei mas primeiro de Deus”, foi o homem da autoridade, da hierarquia e do sacrifício. Evocá-lo não se trata simplesmente de nostalgia ineficaz de grandezas idas, sublinhando, talvez, uma coincidência de aniversários, senão de outra oportunidade de retomar o modelo através do prisma que reflete, para nós, para hoje, este raio luminoso. Trata-se de admirá-lo, uma vez mais, e de repetir que, se se perderam muitas coisas neste circo do mundo em que vivemos, sempre resta a possibilidade de ser, como Thomas More, um senhor. 


1. O homem, um senhor 


“Senhor se nasce, doutor se faz”, diziam até não muito tempo atrás. Todos aceitam a segunda frase, alguns discutem a primeira: ou em nome da História, que tantas vezes a contradisse, ou em nome de uma suposta igualdade. 

Entretanto, para os cristãos, é verdade clara. Pelo batismo nascemos senhores, povo de nobre estirpe, de sangue real. [1] Mas também é certo que essa dignidade assim adquirida – ou herdada – pode ser perdida e, no lugar de fazer valer “tal pai, tal filho” – “servir a Cristo é reinar” [2] – podemos desmentir essa vocação ao senhorio por obras de escravo. 

Sir Thomas More foi um senhor, desses que nascem e se fazem. Senhor também no sentido natural, o qual tem sua importância, uma vez que “gratia supponit naturam”, quer dizer, uma vez que a graça nos supõe. 

Senhor como aqueles poucos que são e exercem, se damos crédito à opinião de seu amigo Erasmo, o qual disse que ele era “homem de singular virtude e de clara e imaculada consciência, e de tal gênio angélico como a Inglaterra jamais teve ou terá igual”. [3] Por natureza, dizia também seu contemporâneo, o professor Robert Wittinton: “More é um homem de inteligência de anjo e singular educação, ao que não conheço semelhante. Onde está um homem de tal suavidade, mansidão e afabilidade? Sabia ser, segundo as circunstâncias, um homem de radiante alegria e muito divertido; e, às vezes, de séria gravidade: um homem para todas as estações”. [4] 

Já havia anunciado o Cardeal Merton, em cuja casa e sob cujo cuidado começaria sua educação: “Quem quer que viva para vê-lo poderá admirar neste menino um homem maravilhoso”. [5] 

E o foi. Dotado de talentos como poucos, a Londres que o viu nascer – filho de um Cavaleiro – receberia, “na idade da primavera, ao ‘coming man’ de crescente reputação na City e na Justiça, o aplaudido membro – ademais – de um seleto grupo internacional de sábios, pai de numerosos filhos que o rodeavam com carinho, e para o qual todas as portas estavam se abrindo”. [6] 

Se alguma vez quis tornar-se cartuxo [7], se de fato é Santo, nunca, no entanto, pretendeu passar uma impressão “santarrona” a um público formalista. Sua atitude foi a atitude de um senhor, absolutamente livre dentro da ampla margem da legítima felicidade dos filhos de Deus. 

Isso se reflete, por exemplo, no estilo em que escreve, calmo, distendido, cheio de senso de humor. Como Chesterton, prescindindo de compromissos e temores, saberia apelar tanto à piada como ao leve toque do sentido comum, assim como à dureza de expressões que o mostram forte e apaixonado contra a heresia e o erro perigoso para os demais. [8] 

Homem de sangue ardente, soube recorrer ao cilício para dominar a sensibilidade – e ao matrimônio duas vezes [nota: a segunda vez já viúvo, por óbvio], com intervalo de um mês – vivendo sempre tenso até uma Eternidade conscientemente esperada. Por isso, brilhou em seu testemunho a serena fortaleza da Esperança. E, enquanto seus melhores amigos vacilariam perante o temor de desagradar o rei, ele expôs sua própria vida com não menor domínio. 
- Por amor a Deus, senhor More – advertia-o um deles, o duque de Norfolk -, recorde que “a indignação do príncipe é a morte”. 
- E isso é tudo, meu senhor? – Respondeu-lhe – Então realmente não há grande diferença entre Sua Graça e eu, pois, se eu morrerei hoje, o senhor morrerá amanhã... [9] 


2. Senhor da sua casa 


Homem do lar, era o verdadeiro patriarca de uma enorme família que integrava com sua mulher e filhos, genros e noras, pupilos e numerosos netos. Holbein pintou também esse quadro familiar e comovedor: é o homem eminente e próspero, paterfamilias em um lar feliz: outro Jó, quando nada fazia supor a tormenta que se avizinhava. 

Mas também porque precisamente era senhor da sua casa, era livre para deixar o lar um dia por um motivo superior, ou – como diria Suhard – por um amor ainda mais forte. 

Assim o explicaria a sua esposa, na prisão, quando ela tentara “recuperá-lo”, mostrando-lhe o contraste entre “esta estreita e suja cela... trancado entre camundongos e ratos... e sua bela casa, com sua biblioteca, seus livros, sua galeria, seu jardim... na companhia da tua esposa e teus filhos e todos os teus que te faziam tão feliz...” 
- Por quanto tempo? – Atribui-se essa contestação a More – Por dez, vinte, trinta anos? E por esse breve tempo perderei a Vida Eterna? 
Esse homem de fino humor, que “nunca falava sem fazer alguma piada e para quem os pequenos gracejos eram o pão de cada dia” [10], com o qual procurava manter viva a serena alegria dos seus, cultivava ao mesmo tempo a solidão para rezar e seguir preparado – por assim dizer – nesse elevar-se ao céu, acima do amor à sua família. Assim, testemunha seu genro que, próximo de sua casa, edificou uma pequena capela e biblioteca, na qual passava boa parte do seu tempo e, especialmente, as sextas-feiras. [11] 

Queria contagiar seus filhos com sua vivíssima Esperança, e lhes repetia que maior mérito teriam em seguir o bom caminho não quando tudo auxiliava a virtude, mas “vivendo num tempo em que vocês verão a virtude castigada e o vício premiado. Se permanecerem firmemente aderidos a Deus, ainda que sejam bons só pela metade do que deveriam, Deus fará o resto”. [12] 

Profecia ou não, esses tempos não tardariam... 



3. Bom servo do rei... 


Se as virtudes de Thomas More são manifestas desde o princípio da sua vida, seu domínio e grandeza tomam novo patamar quando entra no serviço ao rei, quem, graças a seus méritos e apesar dos seus protestos, irá lhe ascendendo até o primeiro posto dentre os súditos. 

“More tomava parte numa missão diplomática atrás da outra, já que suas habilidades no Direito, nas finanças e seu francês fluído faziam-no um membro muito útil de toda a delegação” [13]. E, depois de uma célebre discussão pública acerca de certos direitos aduaneiros na qual fez valer sua ciência e sua prudência, o rei o agregou ao número de seu Conselho privado, com a classe de Cavaleiro. [14] 

Logo, por seus bons ofícios na embaixada de paz ante os reinos da Espanha, França e Portugal, o rei, nomeando-o Lorde Chanceler do Reino no lugar do Cardeal Wolsey, “declara abertamente ao Duque de Norfolk, perante o povo reunido, a gratidão pública por tudo o que o Reino lhe devia”. [15] 

Finalmente, com Henrique VIII, de quem curiosamente – pelo que ocorreria a seguir – havia recebido um dia “a lição mais valiosa que jamais um príncipe ensinara a um vassalo seu, querendo o rei que primeiro obedecesse a Deus, e depois de Deus a ele”[16], com este rei chegou a ter um trato de privilégio, compartilhando como poucos seus jantares, suas preocupações, suas inquietudes culturais. “E, como fora (More) de disposição agradável ao rei e à rainha, durante o jantar, chamaram-lhe para passarem juntos um momento de recreação” [17]. Mais ainda, “pelo prazer que tinha na sua companhia, ocorria [ao rei] às vezes de ir visita-lo repentinamente na sua casa em Chelsea, para se divertirem juntos... ou para comer com ele, e depois passear pelo jardim caminhando, por uma hora, com o braço em seu pescoço...” [18]. Cruel ironia, certamente, no esplêndido relato do seu devoto genro, e tremendo contraste com o que iria ocorrer, precisamente pela falta de domínio do homem que carregava a coroa, a qual, porém, o bom vassalo sempre respeitou e obedeceu, até o último momento. 

Mas, movido por piedade ordenada, este senhor de si mesmo e de seus mais caros afetos é igualmente livre para colocar, como Joana d’Arc, Deus em primeiro lugar, não só à frente do rei como também – não é uma alternativa impossível – à frente de alguns hierarcas eclesiásticos do momento. 

Porque só o Bispo de Rochester, Mons. John Fisher – receberia o cardinalato na prisão -, se levantaria em defesa da verdade, enquanto seus pares claudicavam. 

Escutemos a “parábola” – eterna censura para os sempre dóceis – com que More responde e ensina três bispos, os quais não queriam ver tão distinguido personagem soando uma nota discordante, enquanto eles consentiam no grave capricho de Henrique VIII que provocaria o cisma e a heresia de quase todo um povo: 

“Um imperador – começava a história – ordenou que quem quer que tivesse cometido certo crime deveria morrer, exceto se fosse virgem, tal reverência tinha o estado de virgindade. Mas, ocorreu que a primeira pessoa que foi considerada culpada era uma jovem donzela e, ouvindo isso, o imperador ficou muito perplexo, sem saber como fazer para cumprir a dita lei. Debatia o Conselho largamente sobre o caso quando, de repente, se levanta entre seus membros um bom homem, que diz: ‘Por que criamos tanto problema, meus senhores, acerca de uma matéria tão simples? Façamos primeiro com que a jovem perca a virgindade, e logo a executamos’. Assim – continuou More -, devendo vossas senhorias guardar pura virgindade, tenham grande cuidado em conservá-la. Porque há quem, estando vossas senhorias presentes primeiro na Coroação [da nova Rainha, Ana Bolena], e logo pregando em seu favor e, por fim, escrevendo livros para defender o assunto perante todos, deseja vê-los perdendo a virgindade e, quando tiverem assim vos desflorado, não tardarão em devorá-los. Agora, meus senhores, não está no meu poder evitar que me devorem, mas, sendo Deus meu Bom Senhor, eu cuidarei para que nunca possam me desflorar”. [19] 



4. ...Mas primeiro de Deus 


Frente ao rei ou aos bispos, seus afetos eram ordenados, e a devoção ao Papa, ou melhor, a fidelidade a Deus em seu Vigário, era o amor primeiro, até as últimas consequências. E assim, após uma brilhante carreira, tanto política quanto literária, sob o patrocínio do mesmo soberano, enfrentou a encruzilhada de uma elegante capitulação ou a coerência e o sofrimento. E, ao invés de subscrever o Ato de Supremacia, que questionava a autoridade do Papa e fazia de Henrique VIII a cabeça da Igreja da Inglaterra, como o fizeram muitos bispos, as duas universidades e grandes personagens do momento, preferiu, e assim o disse, “não expor a alma ao perigo da condenação eterna”. [20] 

Sua muda reprovação incomodava. “E este silêncio seu está retumbando por toda a Europa”, exclamava o servil Cromwell. Diante disso, buscaram quebrar sua defesa – não poderiam condená-lo pelo que não havia dito -, tentando fazê-lo dizer, para apresentá-lo como traidor, o que todos sabiam que pensava: que ao rei não era lícito usurpar a Supremacia espiritual do Sumo Pontífice; e, que se o Papa tinha por válido o matrimônio com Catarina de Aragão, este o era, acima de todos os defeitos de Júlio II ou do parentesco da Rainha com o Imperador da Espanha. 

Tudo o que obtiveram dele foi um hipotético: “Assim como o Parlamento não poderia ditar uma lei dizendo que Deus não é Deus, assim tampouco poderia o Parlamento fazer o rei o Chefe Supremo da Igreja” [21]. Dessa afirmação e de outras afirmações muito suspeitas se valeram para condená-lo, mediante a fraude e o perjúrio. 



5. Ai de ti, Inglaterra! 


Senhor da sua vida, a entregaria alegremente quando o momento chegou, porque amava mais o que levaria à sua perda. E, poeta enamorado, comporia no próprio cárcere estes versos à sua “boa sorte”, que – um tanto livremente – poderíamos traduzir: 
“Oh, travessa fortuna, nunca tão formosa luziu

Nem nunca tão agradável e solidária me sorriu

Como agora, que meus pecados e penas vai reparar

Tu que nunca na vida quis me abandonar.

Confio em Deus que num momento estarei, seguro e estável,

No seu céu, para além da tormenta inevitável...” [22]
Sua execução não seria o traiçoeiro crime que, quatro séculos antes, outro Thomas, outro inglês, sofrera também por instigação de outro Rei, outro Henrique, defendendo os direitos da mesma Igreja [nota: refere-se a São Thomas Becket]. Com um certo progresso na elegância, agora os lacaios do amo sentiram a necessidade de montar um simulacro de tribunal para silenciá-lo. 

E parecera que, desde então, um certo pecado de injustiça pseudo-legalizada tinha dominado a sempre pragmática política inglesa. Tendência muitas vezes consentida, que fizera exclamar o poeta hispano, do outro lado da Gibraltar usurpada [versos originais nas notas]: 
“Ai! Te lastima o coração, te aterra...

Mas se Albion um centavo nisso ganha,

Matará a fogo lento meio mundo...

Oh, pérfida! Oh, hipócrita Inglaterra!

Seu próprio rastro apaga com a calda.

...

Com espasmos de velha puritana,

Ver maltratar um vira-lata andarilho

Inglaterra, Inglaterra, velha meretriz,

Jamais farta de sangue de cordeiros,

Sempre tortuosa em seus caminhos.” [23]
A morte deste seu próprio cordeiro escolhido fez dizer o Imperador Carlos “que se ele tivesse sido senhor de semelhante servo, cujas obras ele mesmo havia visto durante vários anos, teria preferido perder a melhor cidade dos seus domínios a perder tão sábio conselheiro” [24]. E a muitos, depois, fez lamentar que “à pessoa de maior virtude que o Reino jamais havia produzido, lhe haviam cortado a cabeça”. [25] 



6. Testemunha da Cristandade 


Muitos e variados ensinamentos se desprendem da vida e paixão de Thomas More. 

Sua Fé e sua Esperança eram a fonte e o segredo do seu humor permanente, da fina ironia com a qual enxergava o mundo e se despediria dele. 

“Dai-me a vossa graça, meu Bom Senhor – anotou em seu devocionário – de ter o mundo em nada...” 

Bem poderia ser chamado “o mártir da família”, porque deu o supremo testemunho em defesa da instituição matrimonial contra o divórcio, de acordo com o ensinamento da Igreja. 

São suas palavras, segundo Bolt: 
- No entanto, não é pela Supremacia que os senhores buscaram meu sangue, mas porque não me dobrei a respeito do matrimônio [adúltero, de Henrique com Ana Bolena]”. [26] 
Do mesmo modo, poderia ser considerado como mártir da necessária submissão dos governos à autoridade da Igreja sobre os Estados no que concerne à moral. Thomas More, com efeito, pôde se considerar até o final – repetiu-o no cadafalso mesmo – “um bom servo do rei, mas primeiro de Deus”, ao qual deviam acatamento, na Autoridade do Papa, tanto ele como o próprio rei da Inglaterra. 

Thomas More, um desses homens que, mesmo sem se proporem a isso, ensinam seus deveres até aos mais hierarquicamente elevados – que às vezes não podem suportá-los -, teria sem dúvida algo a dizer a certos prelados que, em nome de uma suspeita humildade pessoal e se vangloriam de renunciar aos “privilégios eclesiásticos” num mundo secularizado, consentem que se despoje Cristo, o Senhor, dos Seus direitos de soberania sobre as nações, e a Sua Única Igreja do direito de ensinar e julgar em matéria moral. More não caiu na incoerência de remover a esfera política da submissão ao Criador de tudo o que existe. [27] 

Em Utopia, bem mais que uma obra científica, uma espécie de “divertimento” intelectual composto no contexto de intercâmbios literários mais ou menos sérios, livres e humorísticos, More pinta uma sociedade ideal, que vive segundo a lei natural e à lei da razão, combatendo as consequências do pecado original, e planteia a questão tão importante hoje como naqueles tempos: O Estado é a autoridade suprema, ou há leis morais que ele deve obedecer, e que estão acima de quaisquer disposições suas? 

A resposta, que ele subscreveu com sangue, é clara para quem lê o Evangelho sem preconceito, e recebe o Magistério sem taras de relativismo histórico: também César, enquanto César, deve “dar a Deus o que é de Deus”. 

Consequentemente, levantou-se, qual outro João Batista, quase sozinho e incompreendido [28], em um non licet que ressoaria na história inglesa como uma censura perpétua. Foi como dizer ao rei: não te é lícito impor tua vontade acima e contra as normas divinas que a Igreja ensina. Teu intento de “separar” o governo da Igreja, fonte de Luz, ponte de Graça, é como querer separar o corpo da alma; e isso não pode trazer ao Reino mais que morte e corrupção. 

E os frutos dessa revolução anglicana estão à vista, especialmente para quem visita hoje a Grã-Bretanha protestante: igrejas magníficas, que testemunham séculos de Fé pétrea daquela Inglaterra católica, hoje convertidas ou em templos frios (sem o calor do Sacrário, sem a presença da Mãe), ou em museus carentes de vida, “ruínas controladas”, ou simplesmente em sujas casas abandonadas, ainda em pleno centro londrino. São o símbolo trágico, tão doloroso quanto irrefutável, da influência tremendamente exemplar e eficaz do governante, positiva ou negativa, sobre a religiosidade de todo um povo. Povo que atualmente aceita a legislação mais aberrante e que prescinde, em sua grande maioria, dos sucessores daqueles bispos que cuidaram mais do seu cargo que do seu encargo. 

Bispos que, ocupados hoje em tarefas de assistência social ou na controvérsia acerca da ordenação sacerdotal de mulheres – acompanhados nisto inclusive por alguns proeminentes prelados católicos -, ou na justificação “moral” do divórcio e até do aborto, conservam sim o título de Lordes, mas carecem de influência real entre sua gente, acusados, inclusive, pelos periódicos liberais de estarem mais preocupados por conformarem-se nesses temas com uma sociedade que muda que com a imutável vontade de Deus. [29] 

E tudo começou, é impossível negar, quando se produziu aquele formidável contraste entre a frivolidade com a qual Henrique VIII manejava seu poder absoluto – o que já permitia vislumbrar sua futura corrupção [30] – e o estupendo senhorio daquela humilde testemunha da Cristandade. 

Testemunha majestosa em sua simplicidade que, quando disseram-lhe durante o processo que só ele pretendia se opor ao que já haviam aprovado “todos os bispos, universidades e as pessoas mais cultas do Reino”, replicou de forma magistral: 
- Se o número de bispos e universidades conta tanto como parece a Sua Senhoria, então menor motivo ainda vejo para mudar de opinião, pois não duvido que, além deste Reino, em toda a Cristandade há muitos mais bispos e homens instruídos para considerar, e isso só entre os que ainda vivem. Porque, se falássemos dos que já estão mortos, dos quais não poucos são já santos do Céu, estou bem seguro de que a maioria deles, no meu caso, teriam pensado de maneira igual. Por isso, não penso em conformar minha consciência com o Conselho de um Reino, contra o Conselho de toda a Cristandade. [31] 
Testemunha feliz em sua Esperança, que entregaria sua cabeça agradecendo ao que “o enviava ao céu”. 
- O senhor parece muito seguro disso, Sir Thomas – insinuou azedamente, no cadafalso, o Arcebispo Crammer. 
- Deus – foram as últimas palavras do “Man for all seasons” – não recusará um homem que vai tão contente ao Seu encontro... [32] 
*Tradução do artigo original em espanhol sob o título Tomás Moro: Señor hasta el martirio.


NOTAS: 


1. Cf. I Pe. 2, 9. 
2. Lumen Gentium, 36. 
3. Cit. Por William Roper, genro de Thomas More, em sua Life of Saint Thomas More, Dent, Londres, 1978, p. 3. 
4. Daqui tomaria Robert Bolt o título para sua célebre obra teatral sobre a vida do nosso santo, levada também ao cinema: A man for all seasons (ed. Heineman, Londres, 1983). 
5. Roper, o. c., p. 3. 
6. Gordon Rupp, Thomas More, the King’s good servant, Collins, Londres, 1978, p. 15. Rupp é um historiador protestante, professor emérito em Cambridge. 
7. Cf. ibid., p. 14. 
8. Depois de tratar Lutero por louco, orgulhoso, lascivo e mentiroso, e de lamentar-se com um toque de ironia de que os Santos Padres não haviam escrito com maior precisão, tendo em conta o abuso que fariam de seus escritos os reformadores, agrega a respeito destes: “Julgo essa raça de homens absolutamente repugnante e, a menos que recobrem o bom senso, quero ser com eles o mais odioso possível. Dia após dia, quanto mais os conheço, mais aumenta meu temor do tremendo dano que poderiam fazer ao mundo” (carta a Erasmo, cit. por Rupp – o. c., p. 39 – e por E. Wood – em Bolt, o. c., p. 108. 
9. Roper, o. c., p. 35. 
10. Gordon Rupp, o. c., p. 18. 
11. Cf. Roper, o. c., p. 14. 
12. Cf. ibid. 
13. Gordon Rupp, o. c., p. 23. 
14. Cavaleiro (Knight) era o primeiro grau de nobreza, conferido a quem se destacara no serviço do Rei. Correspondia-lhe o tratamento de Sir, enquanto o de Lord era o correspondente aos graus superiores (barão, conde, marquês), com referência ao domínio sobre algum lugar. O Duque e o Príncipe recebiam o tratamento de Sua Graça e Sua Alteza Real, respectivamente. 
15. Roper, o. c., p. 19. 
16. Ibid., p. 25. 
17. Ibid., p. 7. 
18. Ibid., p. 12. 
19. “I will provide that they shall never deflower me” (ibid., p. 29). 
20. Carta a sua filha Margaret, cit. por Gordon Rupp, o. c., p. 50. É interessante o fato de que a primeira versão do Ato de Supremacia provocou resistência geral entre o clero. A Assembleia, disse Wood, “buscou então algum compromisso”, quer dizer, algum arranjo, e se redigiu uma segunda versão, que fazia menção ao juramento de fidelidade ao novo Chefe da Igreja na Inglaterra: “so far as the laws of Christ permit” (na medida em que as leis de Cristo o permitam), o qual, por ser ambíguo, satisfez de modo geral. Mas não a retidão de Thomas More que, conhecendo a defecção da segunda Assembleia, renunciou à Chancelaria. 
21. Roper, o. c., p. 42. 
22. “Eye flatering fortune, look thou never so fair, / nor never so pleasantly begin to smile. / As though thou wouldst my ruin all repair, / During my life thou shalt not me beguile. / Trust I shall God to enter in a while / His haven of heaven, sure and uniform; / Ever after thy calm look I for a storm”. (Roper, o. c., p. 40). 
23. Eugenio Escribano, A la politica secular de Inglaterra. Versos originais: “¡Ay!, te lastima el corazón, te aterra... / Mas si Albión un penique en ello gana, / Matará a fuego lento a medio mundo… / ¡Oh pérfida!, ¡oh hipócrita Inglaterra! / Sus proprias huellas con la cola borra. /…/ Con espasmos de vieja puritana, / Ver maltratar a un gozque vagabundo / Inglaterra, Inglaterra, vieja zorra, / Jamás harta de sangre de corderos, / que siempre tortuosa en sus senderos”. 
24. Roper, o. c., p. 50. 
25. Jonathan Swift, Concerning that universal hatred…, 1736. 
26. O. c., p. 97. 
27. É certo e não ignoramos o fato de que, ante a mutação e decadência moral que a sociedade veio sofrendo, a Igreja mudou a formulação tradicionalmente conhecida como "das duas espadas", e colocou mais relevo em certos direitos da pessoa frente ao Estado (cf. Dignitatis Humanae, Comentário do pe. Julio Meinvielle). Entretanto, dita mudança em nada justifica a nova doutrina que pretende impor o progressismo (elevando a hipótese a tese), considerando a sociedade moderna não "enferma", mas "mais adulta", apta a emancipar-se de toda sujeição à Autoridade espiritual universal colocada por Deus. Thomas More sabia que, posto na obrigação de manifestar seu parecer, teria que tomar uma posição pública em favor da Moral, da Igreja, do Papa. Quando não pôde eludir tal compromisso (nem sequer renunciando à Chancelaria), quando teve que dizer o que pensava, expressou-se como católico fiel à Cristandade, e não louvando a "crescente autonomia do governante frente à Igreja" - como hoje os progressistas não vacilam fazer -, o que teria lisonjeado o rei e lhe alargaria o tempo de vida.
28. Logo lhe fariam eco, como precursores dos vendeanos da França, os católicos de York e Northumberland. Mas, naquele momento, até o holandês Erasmo, quem o havia chamado com admiração "o Sócrates inglês", toma distância: "Não deveria ter se metido em questões tão perigosas; deveria ter deixado a teologia para os teólogos" (cit. por Gordon Rupp, o.c., p. 54). Não meter-se em teologia - se se dirige a um leigo - ou não se meter na política - se a um sacerdote - costumam ser, muitas vezes, os conselhos dos liberais aos que fazem causa comum com a tradicional teologia católica acerca da política.
29. Daily Telegraph, 30 set. 1985.
30. Cf. Robert Bolt, o. c., p. XXIV.
31. Roper, o. c., p. 46. Argumento ideal, também, contra os positivistas do momento.
32. Robert Bolt, o. c., p. 99.



quinta-feira, 31 de outubro de 2019

A matriz protestante da modernidade política e jurídica

Por Miguel Ayuso Torres, jurista e escritor espanhol*






Introdução

Foi num sábado, 31 de outubro de 1517, que o padre Martinho Lutero da Ordem de Santo Agostinho, Mestre em Artes e Doutor em Teologia, professor de Sagrada Escritura na Universidade de Wittenberg, fixou na porta do velho castelo dessa cidade uma declaração que continha suas 95 Teses sobre o poder e a eficácia das indulgências. A disputa que isso abriu com Roma, não obstante, transcendeu a ordem disciplinar e dogmática e se desenvolveu posteriormente, trazendo consigo importantes consequências na ordem moral, jurídica e política. Não poderia ser de outra forma, já que a Cristandade, a res publica christiana, com todos os seus limites, defeitos e falhas, era um agrupamento hierárquico de povos, conectados entre si de acordo com princípios orgânicos de subordinação ao imperador e ao papa, as duas estrelas das quais São Bernardo de Claraval falou.

O ataque ao papado não poderia auxiliar, mas sim causar consequências imediatas ao imperador. Dessa forma, Lutero não poderia limitar sua revolução à negação na prática das autoridades da Cristandade, mas teve que forjar um sistema teórico (ou, mais precisamente, um sistema pré-ideológico) com uma clara dimensão prática, no senso aristotélico do termo: quer dizer, um sistema que fosse de caráter moral, jurídico e político. Consequentemente, uma visão histórica da Revolução Luterana, especialmente respeitando as categorias e preocupações filosóficas, deve ser completada por meio de outra que é mais formalmente filosófica em natureza. É isso que tentamos fazer, seguindo o caminho dos mestres do tradicionalismo hispânico da segunda metade do século XX que supuseram sua necessidade e a explicaram com clareza.

Olhando para o sentido da obra do professor Álvaro d'Ors, por exemplo, nós observamos que  a mesma estava firmemente preocupada com uma consideração dos efeitos do Protestantismo na ética, na política, no direito e na economia, "contra a secularização do espírito 'europeu' não-confessional, contra a forma política do 'estado moderno', contra os 'direitos subjetivos', contra o 'capitalismo consumista'." Isso indicou, ao mesmo tempo e por essa mesma razão, a necessidade de uma análise crítica preliminar das consequências da Reforma Protestante e "um esforço perseverante para purgá-las por meio de atitudes novas e autenticamente cristãs: isto é, católicas; por meio de uma nova ética confessional da qual dependeria uma nova 'ordem mundial', um novo e justo conceito de direito e lei, e um desmantelamento do status quo capitalista". [1]

O professor Francisco Elías de Tejada, criador do Seminário Hispânico de Direito Natural e autor de uma esplêndida estrutura para entender as rupturas da Cristandade, por sua vez focou primeira e principalmente em Lutero - até mesmo se é claramente verdadeiro que:
A heresia luterana é igual a muitas das heresias medievais em matéria de heresia e, de fato, até repete literalmente algumas dessas, como as de Wycliffe e Huss na concepção carismática do poder político, na negação da Transubstanciação Eucarística e na exaltação do espírito dos camponeses nas guerras lollardas e na Guerra dos Camponeses. Entretanto, Lutero se diferenciou de todos devido à gigantesca difusão e o enraizamento na vida cotidiana que uma ocasião propícia ofereceu ao seu trabalho.
Enquanto a Cristandade medieval antes de Lutero era, a despeito de suas fissuras, um edifício político fundado sobre a unidade da Fé, começando por Lutero essa unidade seria impossível. Depois de Lutero, com o desaparecimento da unidade de Fé, o organismo espiritual da Cristandade morreu para ser substituído por esse da 'Europa', um equilíbrio mecânico entre diferentes confissões que coexistiam umas com as outras. [2]
A Europa em comparação com a Cristandade 

Esse mecanismo luterano, que trabalhou nas consciências e foi um resultado direto da introdução do princípio da liberdade de interpretação, foi traduzido por Maquiavel ao comportamento, por Jean Bodin - por meio da 'soberania' - ao poder político, e por Hobbes ao direito natural (o qual Locke segue depois), consolidando assim seu poder sobre as instituições políticas europeias:
A Cristandade morreu para permitir o nascimento da Europa quando esse organismo perfeito se esfacelou entre 1517 e 1648 em cinco sucessivas rupturas, cinco horas de parto da Europa, cinco golpes de adaga no corpo histórico da Cristandade. Essas cinco rupturas foram: a ruptura religiosa do Protestantismo luterano, a ruptura ética com Maquiavel, a ruptura política pelas mãos de Bodin, a ruptura jurídica através de Grócio e Hobbes e a ruptura definitiva do Corpo Místico Cristão com os Tratados da Westfália. De 1517 a 1648, a Europa nasceu e cresceu e, na medida em que a Europa nasceu e cresceu, a Cristandade faliu e morreu. [3]
A oposição entre Cristandade e Europa, firmemente baseada sobre o pensamento tradicional hispânico, levou a uma aguda separação entre a geografia e a história da Europa, com a consequência implícita de sua contemplação como um conceito histórico, i. e., "um tipo de civilização, um estilo de vida, uma concepção de existência, aquilo que os alemães chamariam de Weltanschauung". O problema foi, então, transferido ao conteúdo dessa civilização. E aí começaram as discrepâncias.

Christopher Dawson, por exemplo, não admitiu realmente a diferença entre a civilização medieval e a moderna, de maneira que a última poderia ser tratada como nada mais que a prolongação da primeira. Outros, e aqui eu penso, por exemplo, em Augusto del Noce, insistiram sobre a divisibilidade da modernidade, uma parte em continuidade e outra em contradição com os séculos cristãos. [6]

É claro que a visão de Dawson estava enraizada no ambiente inglês, onde as formas da vida medieval foram preservadas em alto grau. A razão para tal preservação repousa no precioso presente da estabilidade, que permite aos homens e suas famílias ordenarem seu futuro de acordo com leis eternas. Talvez, a única força que possuiu essa estabilidade na idade contemporânea foi o Reino Britânico. Nada do tipo aconteceu no mundo latino e, em particular, no mundo hispânico. É isso que explica as visões opostas acerca do medieval e do moderno.

Dawson, com efeito, sustenta que - a respeito da maioria dos tópicos do assunto atual - a Espanha não era apenas uma parte integral da comunidade europeia, como também uma das criadoras da moderna cultura europeia, i. e., da cultura pós-renascentista E ele pensa que a real causa da falta de compreensão moderna da Espanha e sua cultura deve ser buscada no fracasso dos pensadores convencionais da Europa moderna em entenderem que, uma vez que tanto foi dito e escrito acerca das "duas Espanhas", acabaram caindo em um estado de esquecimento a respeito da realidade da existência de duas Europas; e que a Europa à qual a Espanha pertence - a Europa da cultura barroca - possui um maior grau de unidade internacional do que a cultura da Europa nórdica. Não obstante, a historiografia protestante da Europa do norte depreciou e minimizou a importância e o valor da cultura barroca. E Dawson nota que, surpreendentemente, a maioria dos historiadores espanhóis também não prestaram muita atenção a ela.

Mas a história não acaba aqui, uma vez que o conceito de Europa veio a ter resultados de peculiar importância na Espanha: se, no norte, a ideia de "Europa" foi associada com a tradição e, especialmente, com a ideia de Cristandade como uma unidade sobrenatural, na Espanha, em contraposição, ela adquiriu um caráter anti-tradicional, sendo associada com a inovação e a introdução de novas formas de vida e ideias revolucionárias e subversivas:
É fácil entender a razão para tudo isso. Na Espanha, a facção inovadora sempre foi patrona da europeização, de tal maneira que tornou-se lógico aos mais apegados às tradições e aos ideais nacionais olharem para a Europa como um poder externo e hostil, como uma unidade que era oposta à unidade espanhola, como uma ferramenta para a incorporação num modo de vida estranho com ideias diferentes e irreconciliáveis. [7]
O pensamento tradicional espanhol, com efeito, sustenta que, entre a civilização medieval e a moderna, encontra-se o mal da secularização:
A Europa, então, significaria nada além de uma fórmula secularizada para a Cristandade devastada... [Por essa razão,] a Espanha, rejeitando teimosamente a Reforma, não estava apta a olhar para essa substituição fraudulenta com prazer... Para a mentalidade espanhola, não poderia existir grande diferença entre um americano e um europeu católicos. O americano era também parte da Cristandade. Por outro lado, havia uma grande diferença entre um católico e um herege, mesmo se os dois fossem europeus. A distinção era fundada, então, num critério de fé, não em diferenças de raça, localização geográfica, diferenças culturais e de clima, etc. Europeísmo e ocidentalismo são formas de separatismo, e teologicamente inadmissíveis. [8]
Isso significou que a Espanha veio a ser uma "Cristandade menor", uma espécie de Cristandade reservada, uma Cristandade fronteiriça, de retaguarda, que preservou no tempo o velho espírito que essa teve nas agonias da morte, vítima da Europa laicizada em quase todas as suas partes. E o "europeísmo" permaneceu como "o ideal de incorporar a Espanha à Europa moderna, uma Europa de coexistência e neutralidade religiosa, abandonando o senso do nosso passado, que sempre foi fiel à unidade política e religiosa do Catolicismo". [9] Só recentemente, com a aproximação da Espanha ao "nível europeu", é que essa nuance foi obscurecida, embora ainda retenha certa significância, pois as forças laicizantes continuam acolhendo o tema da Europa e da europeização para vender seus produtos culturais no mercado nacional. 

Secularização

O traço que caracteriza a Europa moderna - que, como vimos, é mera substituição fraudulenta da Cristandade - é a secularização que, em boa medida, é também resultado do Protestantismo. 

A sociedade cristã, em suas origens, era uma rede de instituições que desfrutavam de autonomia interna de forma a permitir aos homens encontrarem sua liberdade dentro desse conjunto de sociedades diversas. A liberdade, então, era algo a ser desenvolvido num ambiente complexo de distintas sociedades e através do curso dos eventos humanos, incluindo os conflitos. E, enfim, a liberdade era coroada pela liberdade de se entregar a Deus e participar, deste modo, da liberdade divina.

É precisamente aqui que se vê um segundo traço da unidade cristã, devido à convicção vital da Idade Média de que toda realidade era obra de Deus: que todas as coisas foram criadas por Ele do nada e que, por isso, a realidade em geral era nada mais que uma dádiva - uma dádiva de Deus. A realidade possuía suas próprias leis, as quais eram reflexos do Amor e da Sabedoria Divina e, no homem, tais leis eram encontradas num arranjo especial, pois não somente se submetia à lei como governava ele mesmo, de acordo com o seu julgamento.

Em terceiro e último lugar, podemos ver que a sociedade medieval era organizada como um mundo sagrado. Dado que Deus criou o homem, toda Criação foi elevada a um nível sagrado: teve lugar o que pode ser chamado de divinização da realidade. Nesta, era apropriado distinguir, mas não separar, a Igreja e a comunidade política, o sobrenatural do natural:
A visão do mundo como sagrado fez com que o homem não fosse considerado somente como uma qualquer coisa específica ou instituição e nada mais do que isso, nem como um mero bloco de matéria desprovido de significado, mas como uma realidade sempre banhada pela graça de Deus. Sim, toda a realidade vivia sua própria vida, mas a vivia dentro da vida de Deus. Deus estava tão próximo do homem que o homem quase tocava-O fisicamente. O homem via Deus em todas as coisas que existiam. O símbolo mais dramático dessa sacralização do cosmos era o rito de coroação. Ainda que o rei ou o imperador não recebesse nenhum novo sacramento quando fosse coroado (pois há apenas sete sacramentos, nem mais, nem menos), ele recebia, através da coroação, um sacramental. Seu juramento às leis da terra e à justiça não era simplesmente um contrato entre o rei e seus súditos. Ao contrário, era um contrato no qual figurava Deus e Sua graça. A ordem política, tal como a ordem social, pertenciam à ordem do sacramental. O céu se confundia com a terra a fim de abençoar esta, e o tempo estava absorvido dentro da eternidade. Toda a criação seguia seu ritmo na vida trinitária de Deus Pai, do Filho e do Espírito Santo. A sociedade sagrada, em suma, era a consequência da Encarnação e da Redenção. Um Estado separado da Igreja, uma sociedade despojada do divino, uma religião restrita à privacidade da consciência individual seriam pesadelos e monstruosidades para um homem da Cristandade nos séculos em que ela floresceu. Ele desfrutava de uma união entre o natural e o divino que era o resultado da própria estrutura da existência, uma vez que esta havia sido transformada pela obra salvífica de Cristo. [10]
Embora possamos observar alguma tensão e mesmo oposição entre o humanismo renascentista e o protestantismo, os dois militaram juntos para esmagar esse mundo sacro e impulsionar a secularização. O primeiro tomou como ponto de partida um fundamento psicológico, que impactou a ordem sociopolítica e também tomou um sentido religioso. Psicologicamente, o homem descobriu potencialidades que pertenciam à natureza humana por si só, sem qualquer referência à graça de Deus. Como resultado, despojou-se o homem e a realidade natural do seu caráter sagrado. Adicionalmente ao impacto político dessa atitude, para o qual nós retornaremos em breve, é apropriado indicar sua complexa significância religiosa, uma vez que a religião começou a retroceder para a consciência particular do homem, como se Deus tivesse se retirado do mundo. A Fé passou de um ato corporativo para um ato puramente individual.

É claro que, aqui, estamos lidando com um processo no qual o tempo desempenhou um papel importante em seu desenvolvimento. Na esfera religiosa, por exemplo, nem a maioria das personalidades mais significantes - nem, muito menos, a massa da população - professou o ateísmo. Entretanto, muitas coisas começaram a apontar para um futuro que não somente rejeitaria o caráter sagrado do mundo, como também a realidade mesma do Deus cristão. Talvez possamos indicar uma exceção no mundo hispânico onde, em contraste, a Renascença não teve essa significância de ruptura discreta, mas de um singular enriquecimento humano do teocentrismo medieval, que se diferenciou de qualquer antropocentrismo potencialmente contido nela. Foi precisamente esse enriquecimento do teocentrismo que constituiu a civilização do barroco. [11]

Um escritor brilhante, falando a respeito de Quixote, esclareceu isto recentemente:
Na primeira parte do livro, Dom Quixote encarnava o espírito de uma Idade Média moribunda que foi feita vassala da petulante juventude da Renascença, que desprezoava um personagem que ainda era guiado pelos códigos de cavalaria, tratando-o como um ridículo e carcomido inútil. Na segunda parte, toma lugar na obra de Cervantes a mesma metamorfose que se produziu naqueles anos na vida espanhola em geral: o Renascimento refratário a Dom Quixote se rendia, decrépito e esvaziado, perante a força renascida da Idade Média, tão íntima dos ideais quixotescos. Dom Quixote se levanta, assim, como o símbolo de uma Espanha que batalha contra sua época, que tem a coragem para combater o espírito triunfante e orgulhoso do Renascimento ao ponto de conseguir dominá-lo, brandindo a força vital de uma cosmovisão medieval. Cervantes sabia como simbolizar essa batalha através das proezas de seu personagem, que consegue se impor a um mundo insociável e hostil. E, para essa façanha quixótica de reimpor as ideias da Idade Média sobre o espírito corrupto da Renascença, nós damos o nome de Barroco. [12]
Entretanto, a destruição da unidade cristã, enfraquecida pelo espírito renascentista e pela aceleração do processo de secularização, teve que esperar pelo protesto luterano e suas consequências. [13] É verdade que Lutero, por um lado, com sua predestinação fatalística, representou uma reação contra o otimismo do tempo. Mas, quebrando a harmonia entre fé e obras como consequência da separação entre natureza e a graça, ele também arrebentou todas as cadeias que forjavam juntas a verdadeira vida social e política. E, de fato, se a natureza humana em geral carece de valor, a razão tampouco o tem e, consequentemente, o homem não pode descobrir as leis da política e da vida moral. Assim desapareceu "o maravilhoso equilíbrio lógico da liberdade com o direito natural no negócio da salvação eterna,... construído no dualismo do Criador que legisla com a criatura humana, que é livre, racional e responsável". [14]

A esterilidade cultural e histórica implicou que tal plano tornou-se um agente agressivo da secularização com o calvinismo, o destruidor da unidade de tudo aquilo que repousa no coração da vida tradicional. De maneira a tomar outra via aparentemente oposta à da Renascença, veio a afirmar uma visão não-sacramental da existência, constituindo esse anti-sacramentalismo como um elemento intrínseco da visão cósmica protestante: a dupla revelação - natural e sobrenatural - de Deus ao homem era um sofisma papal; o mundo carecia de um valor sacramental que poderia nos conduzir ao seu Criador. [15] Essa foi a "teologia" com a qual os puritanos desembarcaram em Massachusetts e posteriormente moldou a ideologia americanista. [16]

O Estado

O produto secularizado da Cristandade que chamamos de Europa foi moldado de iure após a Paz de Vestfália como um concerto de "Estados". Aqui, também, nós encontramos o espírito do Protestantismo.

Todas as referências ao termo "Estado" trazem com elas várias ambiguidades que nos obrigam a um trabalho inicial de poda para deixar seus significados claros. [17] Limitando-nos a um dos galhos mais frondosos que necessitam dessa poda, é suficiente para nós, agora, notar que, além da intemporal comunidade política, "o Estado" como conceito histórico começou identificado com "o Estado moderno [i. e., uma entidade com tempo determinado]". [18] Dessa maneira, somos confrontados com a confusão criada pelos grandes juristas alemães do século XIX que aplicaram suas próprias categorias de pensamento (a separação de poderes, a diferença entre sociedade e Estado, etc.) aos mundos grego, romano e medieval. [19] O Estado de um momento histórico particular, substituindo-se por todas as formas prévias de coabitação política, era agora visto como possuindo a forma de uma pessoa distinta dos cidadãos; como sendo uma entidade artificial que foi fruto do contrato social, um produto do gênio humano, e dotado de soberania. [20]

A história atual do Estado foi, então, repetidamente atacada, e por diversos ângulos. Assim como em tantos outros temas, a inteira natureza do Estado destacou-se do único princípio da soberania, já que os dois estavam conectados de antemão. [21] Apenas citemos um esforço recente para traçar a história do conceito de governo no Ocidente, desde sua origem patrística - onde "o regime governamental" era visto como o ofício de almas líderes - até sua petrificação na linguagem jurídica-administrativa do Estado moderno. Aqui, os estágios de uma secularização progressiva são reconstruídos, bem como as mutações estabelecendo como - no final da Idade Média - certos desenvolvimentos levaram a uma inversão do relacionamento entre o governo (o regime) e - aqui nos referimos ao poder monárquico - o reino. A conclusão é que, confrontada com a visão exagerada de que "o governo" pressupõe a existência do Estado (moderno), por séculos foram, entretanto, as demandas do "regime governante" que definiram as condições para o exercício do poder. [22] Demorou até o século XVI - após Maquiavel - para o Estado, fruto de uma evolução secular e vencedor nesse contexto devido a uma crise sem precedentes, impor-se a si mesmo como o fundamento da ordem civil e constituir o princípio das práticas governamentais. Então, o exercício do poder governamental do regime e uma certa imagem do príncipe virtuoso que viera com ele desapareceram ante a asserção dos direitos do soberano.

Notemos que já há muito tempo o professor Álvaro d'Ors, tendo por ponto de partida a bem conhecida afirmação de Carl Schmitt acerca da historicidade do Estado - particularmente em contraste com a experiência hispânica -, estabeleceu os requisitos do Estado. Num senso estrito, o Estado nem sempre existiu e é possível que venha a cessar de existir num momento futuro. Outra coisa certa é que a sociedade, estabelecida como uma unidade relativamente independente num território específico, sempre foi fundada com um sistema comum de governo superior ao familiar. Para designar essa forma de existência social que sempre existiu e que só dificilmente poderia desaparecer - ele sugere -, podemos usar o termo "república". Podemos fazê-lo desde que a diferenciemos daquela forma concreta de governo em oposição ao reino, e que não acrescentemos outro significado ao literal - "a coisa pública" ou, melhor, "a gestão pública":
O Estado, propriamente entendido, apareceu no século XVI como uma reação para acabar com a anarquia provocada em algumas nações europeias por guerras religiosas. A Espanha, vendo-se felizmente livre dessas guerras, não sentia realmente a necessidade de um Estado e, por causa disso, a Teoria do Estado - uma construção política feita por "políticos" - foi mal recebida pelos nossos pensadores clássicos. E, de fato, o Estado só foi trazido à realidade na Espanha de maneira bem vagarosa e com grande dificuldade, e sempre dirigido por influências estrangeiras, sobretudo a francesa, uma vez que é na França que a ideia de Estado obteve sua maior racionalização, começando pela obra de Bodin, o primeiro grande teórico do mesmo. [23]
Uma ordem "dirigida pelo Estado" é, assim, assegurada no contexto da pseudo-Reforma Protestante. Isso encorajou o particularismo territorial, reforçando a retirada do modelo universal através de sua antropologia pessimista. Tal força dirigente utilizou a desconfiança como uma categoria para lidar com a vida humana e destruiu, consequentemente, o caráter comunitário da vida coletiva - já que uma das bases para a existência de comunidade é a confiança. Vejamos esses fatores um por um.

O mundo cristão estava ligado ao direito natural, mas também a uma ordem existencial no topo da qual - onde a Cristandade como tal era referência - estava o Sacro Império. Isso simbolizava a unidade das nações e corporações políticas numa união que as abrangia sem aniquilá-las como entidades separadas. A nascente secularização tornou possível que cada parte ganhasse uma consciência do próprio gênio, isolada da comunidade da Cristandade, a qual estava perdendo seu senso de propósito, enquanto cada nação buscava cumprir seu destino fora do bem comum de todos os cristãos na ordem política. Esse bem comum era a justiça e a caridade dentro da Cristandade e a defesa contra o inimigo da civilização cristã fora dela:
Ao invés de encontrar sua missão na vida de todas as pátrias unidas, internacionalmente cristãs, cada nação (à exceção da Espanha e do mundo por ela cristianizado) escolheu um objetivo político que nada tinha a ver com o Cristianismo como tal. A França, por exemplo - ainda que não tenha negado sua Fé Católica - fez tratados com nações protestantes e lutou contra nações católicas em favor de uma glória que era puramente secular e nacional. Podemos chamar essa fase de secularização do Ocidente como oa absolutização do Estado. No fim, o Estado contou mais (e continua contando mais) que as demandas do Cristianismo. [25]
Com a communitas ou universitas christiana destruída, a ideia de Estado foi apropriada para a construção  de uma nova forma política. Com efeito, o abandono da ordem natural e existencial na qual, historicamente, essa forma foi encarnada levou a uma construção artificial esvaziada da substância comunitária. A política teve que ser substituída pela "cratologia" - i. e., a ciência do uso da força, a qual Maquiavel arraigou na origem inata do poder, que Bodin contribuiu para afirmar com sua decisiva introdução da ideia de soberania e que Hobbes, mais particularmente, arquitetou em uma nova "ciência" da política.

Devemos notar que, para começar, ainda que o Estado fosse inicialmente nada mais que uma forma política, rapidamente, por causa de seus pressupostos doutrinais e de circunstâncias históricas, ele saiu dessa posição limitada para trabalhar por uma transformação substancial da concepção da vida política em geral. Fê-lo por razões ideológicas, i. e., estimulado por um racionalismo infundado. A chave para entender isso repousa no abandono da lógica de governo e sua substituição por uma lógica estatista, que é o produto de um mero contrato e da sua consequência, a soberania.

A visão anterior era baseada na sociabilidade natural do homem e via a realidade do governo como algo natural, que era inerente à sociedade, juntamente com um amplo número de leis fundamentais adequadas ao organismo político. A nova visão, em contraste, com seu foco no problema da origem do poder político, orienta-se e explica-se a si mesma pelo ponto de vista da soberania, e assim entra no domínio da epistemologia ao invés da pura práxis. Consequentemente, chega à conclusão radical de que não pode existir outra forma de ordem humana ou extra-humana, tanto natural quanto criada, que não aquela do próprio Estado, a forma política moderna, assim como os gregos não podiam conceber a vida fora da polis - embora por razões muito diferentes, visto que a origem da polis é realmente natural, o produto de uma ordenação das coisas, enquanto no caso moderno a organização é puramente mecânica em caráter. E, ao pressupor uma situação de desordem na qual se vive de maneira anti-política ao invés de não-política, sendo essa situação de luta ou de indiferença, é por razões utilitárias que os homens instituem uma ordem política, são eles que definitivamente geram tal ordem: artificialmente, ou seja, por um pacto.

Tal concepção aparece graças ao conceito que legitima a forma estatista da ordem civil, transformando-a em absolutamente soberana, politica e juridicamente. Com efeito, o conceito de Bodin em relação à soberania, derrubando o conceito orgânico de autoridade, deu ao Estado, em sua monopolização da ordem política, a habilidade de legislar e, com esse poder, o monopólio do direito. Dessa forma, a ordem do Estado foi organizada através de leis que constituíram o espaço público no qual o Estado governa. O elemento político e o elemento jurídico foram misturados e confundidos. Num primeiro momento, o político prevaleceu, mas - com o tempo - o jurídico veio a tomar a dianteira, e assim a juridicidade - na realidade, legislação - o fez em detrimento do governo e da política:
Essa mudança, preparada por Bodin e a doutrina contratualista, aconteceu após a Revolução Francesa sob a influência de Rousseau e sua doutrina da soberania popular. A soberania, desde o início, passou a opor-se à predominância do costume como um meio de conhecer o direito, uma vez que proclamava que a lei e a legalidade eram justificadas apenas pela vontade do Estado, cuja força e vida dependia da efetividade do aparato estatal. Por essa razão, a coação constitui um requisito essencial à lei estatal, em contraste com a ideia tradicional característica de direito. Em suma, a soberania moderna fez os homens conceberem a forma política do governo não como uma forma histórica de colocar "a coisa pública", em cuja vida todos os homens essencialmente participam, em ordem, mas como uma organização existindo através de um direito, leis e vida próprias, determinando sua própria ordem assim como da sociedade com um todo. O resultado é que a política prática do moderno Estado político é concebida como a única ordem possível e o único meio de se viver de forma humana e segura. Enquanto a ordenação da vida pressupõe liberdade política, a moderna força organizadora cria segurança em detrimento da liberdade. O governo do Estado moderno não é realmente "político" no sentido de ter a capacidade para decidir. Ao contrário, é uma instituição estatal que se limita a desenvolver as consequências da decisão original que configura o contrato social e a submissão ao Estado: é um mero executor, um poder executivo. [26]
As consequências implícitas no contratualismo social se desenvolveram progressivamente no plano histórico, graças à doutrina político-jurídica da soberania. E essas podem ser sumarizadas - de acordo com o autor a partir do qual seguimos esta última discussão - notando que, na mesma proporção em que cresceu o nível de monopólio do Estado soberano sobre a atividade social, a identidade entre Estado e governo também cresceu, o último perdendo seu caráter político - seu poder de efetuar decisões práticas - em troca da aquisição de um tom burocrático, administrativo. O extensivo e indiferenciado uso dos dois termos juntos - Estado e governo - indica isso claramente.

Observa-se, portanto, as duas faces do Estado moderno: desde o momento em que este quebrou a velha unidade da Cristandade, alimentou uma tendência para a universalização do Estado modelo, enquanto buscava promover uma dupla estrutura de sociedade. Mas esse é só um paradoxo aparente, análogo ao paradoxo aparente do pluralismo. O pluralismo parece promover uma singularidade dentro de um tipo muito diferente de unidade. Mas pluralidade e pluralismo, unidade e unitarismo, na realidade se desenvolvem em dois níveis diferentes, sem espaço para seu verdadeiro encontro. Eles seguem no nível da realidade e da ideologia, similarmente à questão que estamos discutindo aqui. Assim, de um lado nós encontramos a tendência para uma ordem universal embasada na pluralidade das realidades políticas naturais enquanto, do outro, nós vemos um particularismo homogeneizado e, no nosso tempo, um globalismo homogeneizado.

O que vimos nos obriga a retornar aos nossos pressupostos. A gnosis luterana consistiu, essencialmente, na recusa ao reconhecimento do ser real das coisas criadas. As coisas criadas tiveram que ser construídas. Isso toma lugar logo que as consequências políticas do luteranismo - a redução da política ao poder apartado do bem comum e suas consequências jurídicas - a redução da "justiça" (em parênteses) primeiramente à "lei" e então às pretensões subjetivas consideradas como "direitos" - se desenvolveram. Vale a pena gastar algum tempo para tratar sobre cada um desses aspectos da questão.

A liberdade moderna e sua sequela política

Falamos acerca da gnosis luterana, e devemos definir o significado dessa gnosis para entender o que foi dito, bem como entender o que vem a seguir. Embora começar com seu significado possa ter sido evidente apenas àqueles capazes de adivinhar as consequências lógicas derivadas de suas afirmações básicas, o tempo revelou a essência gnóstica da Reforma Protestante. Com efeito, teríamos que esperar pelo luterano Hegel para adivinhar com toda a clareza as escolhas fundamentais feitas pela Reforma - sua matriz racionalista; escolhas não são justificadas pela realidade, mas sim afirmadas e impostas sobre e contra a realidade.

Isso é verdade, por exemplo, para a "liberdade" luterana, entendida como "liberdade negativa", a qual, por sua vez, leva coerentemente à primazia da consciência sobre a ordem objetiva (a consciência como única fonte do bem e do mal; a consciência subjetiva que não recebe ordem, mas sim afirma ser ordem em si mesma) e liberdade de interpretação (quer seja absolutamente individual ou comunitária, como quando é exercida por um corpo chamando a si mesmo de "o Povo de Deus") acerca da Escritura. As "decisões primárias" da Reforma marcam a afirmação da vontade sobre a razão e são, dessa forma, a renovada manifestação do orgulho que caracteriza o Pecado Original:  desejo que a ordem da Criação curve-se à vontade humana. [28]

Essa liberdade gnóstica - cujas raízes são muito profundas e distantes no tempo, luciferinas e adâmicas a princípio, e construídas sobre os princípios de não servir a Deus e de dar uma lei para si próprio - encontrou um ambiente cultural particularmente favorável à sua proposição e desenvolvimento de maneira nova com a doutrina protestante, que assinalou uma forte e decidida escolha a favor do racionalismo. E é por isso que a ideia luterana da "liberdade cristã", subsequentemente secularizada,  deu origem à ideologia moderna:
É uma liberdade sempre entendida como uma autonomia no sentido estrito da palavra, uma independência do homem a respeito de quaisquer obrigações de classe ou normas que são impostas por fontes alheias à sua subjetividade. É uma liberdade que só pode ser entendida como de fato sendo um princípio primeiro ou absoluto, uma vez que, se qualquer coisa a condiciona ou a limita, cessa de ser o que é... E isso carrega a marca, em toda a história posterior a Lutero, da negação do livre-arbítrio no homem, a qual é uma premissa essencial. [29]
No plano político, a doutrina de Lutero está, como já notado, na origem do Estado moderno, o qual é concebido como um instrumento de punição para a perversidade humana, absolutamente necessário por causa disso, mas apenas como um "mal necessário". Ademais, o Estado moderno, sobretudo inciado com a Paz de Augsburgo (1555), tornou-se "intolerante":
Tão intolerante a ponto de obrigar muitos protestantes a abandonar a Europa para preservarem suas próprias (ainda que errôneas) convicções acerca da consciência, liberdade e religião. A doutrina luterana reforçou o absolutismo em virtude de um processo gradual e articulado, um absolutismo que não demorou a transformar-se na democracia moderna, em particular invocando a soberania popular, que é a outra via do forte Estado moderno para afirmar a liberdade negativa, a vontade irracional e a absoluta primazia do indivíduo em todas as ordens, inclusive a da Criação. [30]
O que está em discussão aqui é uma utopia sobre a qual foram construídas distintas doutrinas morais e teorias políticas que produziram uma heterogeneidade de fins, uma vez que nenhuma delas, de fato, teve sucesso em alcançar a liberdade como "liberação" (como a "liberdade" mais livre promovida pelos liberais) sem encontrar contradições ou impasses retóricos:
Locke não obteve êxito: sua doutrina levou, no plano político-jurídico, ao positivismo puro através da hermenêutica do direito natural racionalista oferecida - no julgamento dele - pelo soberano. Nem o obteve Rousseau; Rousseau, cuja teoria política se apoia e deságua no totalitarismo. Kant não poderia atingir tampouco, constrangido a fazer da autonomia da vontade o instrumento do republicanismo e, dessa forma, não distanciando-se, na prática, das conclusões de Rousseau, pelo qual nutriu e ao qual manifestou um entusiasmo irracional. Não pôde alcançá-lo Hegel, que fez do Estado o maior momento da subjetividade, por definição livre em sua auto-determinação. Finalmente, as "novas" doutrinas liberais do nosso tempo não obtiveram êxito, obrigadas a invocarem um nihilismo teorético (cuja afirmação constitui já uma contradição) a fim de impor tanto ordenamentos jurídicos neutras para confrontarem a realidade e o bem quanto práticas vitais inspiradas no relativismo. As dificuldades e as contradições do nosso tempo são o sinal e, às vezes, a prova do absurdo da assunção da liberdade liberal como liberdade. A liberdade liberal, propriamente falando, é a "liberdade negativa", i. e., a liberdade exercitada somente com o critério da liberdade, i. e., sem qualquer critério. Pouco importa, sob o ângulo teorético, ainda que a questão resulte relevante a partir do prático, que essa liberdade se exercite pelo indivíduo ou pelo Estado. O que se destaca é que postula que a liberdade é liberação: liberação da condição finita, liberação da própria natureza, liberação da autoridade, liberação das necessidades, etc. [31]
A liberdade liberal é, essencialmente, uma demanda por independência da ordem das coisas; i. e., dos dados ontológicos da Criação e, enfim, independência até de si mesmo:
A liberdade liberal, dessa forma, demanda coerentemente, ainda que absurdamente, a soberania da vontade, seja do indivíduo, da sociedade ou do Estado. Busca sempre afirmar a liberdade em respeito a Deus e a liberação de Sua Lei com a intenção de ratificar a vontade/poder sem critérios e, no máximo, admitir somente os critérios que derivam dela, e tais - por dependerem disso - não são propriamente critérios. Daí a demanda pelas chamadas liberdades "concretas": liberdade de pensamento como oposta à liberdade para pensar; liberdade de religião como oposta à liberdade para a religião; liberdade de consciência ao invés de liberdade para a consciência, etc. [32]
Em suma, o liberalismo é a cria do protestantismo, particularmente do calvinismo, e ambos - como concluiu um autor - são os perpétuos inimigos da Cidade Católica. É de crucial importância entender isso, pois "um homem incapaz de perceber o papel do protestantismo e, sobretudo, do calvinismo na História, não pode ter qualquer visão clara sobre a crise dos nossos tempos". [33]

Direitos subjetivos e direitos humanos

Também de grande importância é a consequência jurídica da concepção protestante da liberdade no que concerne aos direitos subjetivos e, a fortiori, àqueles que são chamados de "direitos humanos".

A sabedoria clássica, mais perene que meramente antiga, observou a equação do direito e justiça como identificando "direito" com "o justo", tanto em grego (to dikaion) como em latim (id quod justum est). O direito era o objeto primeiro da justiça, embora sua definição rapidamente tenha se desenvolvido: seria a arte de discerni-la, a "sentença" proclamando um julgamento relativo a ela, a lei em si mesma (na medida em que possa ser "justa", somente quando os fatos do tipo universal coincidem exatamente com os fatos do caso particular), e até mesmo a faculdade moral que cada um de nós possui sobre o que nos pertence e o que nos é devido. [34]

Os dois primeiros desenvolvimentos encontramos no próprio São Tomás, enquanto os dois últimos pertencem à segunda era escolástica, respectivamente a Francisco de Vitória, dominicano, e a Francisco Suárez, jesuíta. Aquino utiliza a mesma palavra "direito" para identificar a arte pela qual nós alcançamos o conhecimento do justo (ars artem quam qua cognoscitur quid sit iustum), bem como o julgamento dado por aquele que administra a justiça (quod redditur ab eo ad cuius officium pertinet iustitiam facere). [35]

O terceiro, em contraste, não é aceitado por São Tomás, embora ele não o exclua. É uma questão de perspectiva. [36] Para ele, bem como para os juristas romanos, o direito não é essencialmente um conjunto de regras; por isso, afirma expressamente que a lei não é "direito", mas sim uma certa racionalização do "direito" (lex non est ipsum ius proprie loquendo sed aliqualis ratio iuris), uma vez que:
Assim como o artista tem na mente o plano do que faz com a sua arte, e que se chama a regra dela; assim também na mente preexiste uma ideia da obra justa que a razão determina, ideia que é como que a regra da prudência. E esta, quando redigida por escrito, chama-se lei; pois, a lei, segundo Isidoro, é uma constituição escrita. Por onde, a lei, propriamente falando, não é o direito mesmo, mas, uma certa razão do direito. [37]
Não obstante, o dominicano espanhol do século XVI, ainda que não rejeite o pensamento de seu antecessor, realmente olha para ele a partir do ângulo da relevância crescente da lei: para Vitória, a lei é também direito (alio modo capitur ius pro lege ipsa), conquanto, naturalmente, "na medida em que é justa". [38] E, com o jesuíta, o direito subjetivo aparece entre aquilo que é análogo ao direito, entendendo a definição também como a faculdade moral que alguém possui, tanto em relação a uma coisa própria quanto ao que é (justamente) devido a ele (facultas quaedam moralis quam unusquisque habet vel circa rem suam vel ad rem sibi debita). [39]

Embora o debate também tenha girado em torno da ideia da lei como coisa análoga ao direito, ele foi mais intenso  sobre a questão do direito subjetivo. Alguns autores criticaram o próprio conceito de "direito subjetivo" como nocivo à justiça objetiva, indicando que a distinção entre subjetivo e objetivo é produto de uma análise racionalista desnecessária para compreender a realidade jurídica. [40] E, ainda que o entendimento do direito como uma faculdade ou poder tenha precedentes no pensamento católico, "o esforço para distinguir a faculdade da regra, o subjetivo do objetivo, é muito particular à doutrina racionalista protestante, que tende a reforçar o individualismo e a relativizar a objetividade do critério de justiça". [41] Outros autores, ao contrário, moderaram seu juízo, rejeitando não tanto o conceito de direito subjetivo, mas sua tendência para deslizar ao terreno da mera presunção. Suas análises começam com a definição de direito dada por Gaio como obligatio iuris vinculum quo necessitate adstringimur alicuiu solvendae rei, secundum nostrae civitatis iura. [42] E isso serve não somente para contratos, como também para todas as obrigações naturais, de tal modo que, mesmo quando o direito é facultas ou poder, ele não pode escapar para longe de uma obligatio iuris, em outros obligatio moralis, uma vez que o dever que demanda completude dá origem ao direito como seu complemento:
O direito subjetivo não é, por essa mesma razão, criado pela norma positiva. Ele é "coletado" da norma positiva que reconhece no sujeito também a ação para reivindicá-lo. O direito subjetivo não é uma facultas agendi baseada na norma para que aja, como a doutrina do positivismo jurídico continua a sustentar. A norma agendi não pode, tampouco, propor ou retirar a obligatio iuris.
O direito subjetivo é a facultas moralis, como Suárez, [43] por exemplo, defende, no senso de que a satisfação de uma inclinação natural ou a resposta a uma vocação natural são, às vezes, requeridas a fim de cumprir uma necessidade ou um dever.  

Os "direitos humanos" devem ser entendidos nesse contexto, o da modernidade, o qual está estreitamente ligado ao subjetivismo:
Com efeito, a tendência que foi universalmente manifestada desde a Renascença tomou forma de um regresso do objetivo para o subjetivo. Assim, na esfera religiosa, os dados objetivos a respeito das realidades sobrenaturais foram suplantados pelo princípio subjetivo da "livre interpretação"; na ordem moral e jurídica, as noções de fim, de bem comum e de uma ordem objetiva instituída com o intuito de alcançá-los foram substituídas pela "ideia de dever" e pela "harmonização da liberdade de cada um com a liberdade de todos os outros". No plano político, cessou-se a visão das instituições como produtos de leis prévias a elas e mais elevadas em seus fundamentos que as vontades individuais e se passou a vê-las como o resultado de um "contrato social", como o fruto de uma harmonização das liberdades individuais. Em consequência, não é possível assegurar às mesmas mais fins que aqueles dedicados a salvaguardarem as prerrogativas e os direitos originais do individualismo. E, no campo econômico, a ideia da satisfação das necessidades materiais se encontrou subordinada à lei da "livre concorrência", quando não foi inteiramente eclipsada por esta. [44]
A respeito disso, o que nos interessa aqui, o que se destaca da visão anterior, é a consideração da liberdade como prius, como um valor absoluto, ausentes todos os vínculos e limitações e, em segundo lugar, com ainda maior significado direto para o conceito de direito, o início de uma asserção do mesmo como direito subjetivo. Nesse sentido, e chegando aos estágios finais de desenvolvimento, nós podemos dizer que:
O vício do liberalismo... consistiu na inversão da ordem dos valores. Ao invés de considerar as manifestações da liberdade como matéria que deve ser regulada... converteu a liberdade mesma numa lei suprema e última. E, como consequência, despojou a razão da sua supremacia prática; somente enxergou o ato humano quando este escapou de sua própria governança, como se estivesse desintegrado. Esses dois erros provocaram um terceiro, o qual consistiu em olhar para o poder do homem como a expressão de seu direito. [45]
É assim que o liberalismo fez da "mudança do objetivo para o subjetivo" um fenômeno geral, confundindo o que é direito com as prerrogativas da pessoa, com o poder - que emana de seu caráter como um ser livre - de explorar essas prerrogativas e ordenar sua consideração. E esse poder é o que tem sido chamado de direito subjetivo.

Separar a noção de "direitos do homem" da categoria do "direito subjetivo" resulta uma tarefa impossível. E precisamente por causa das assunções complexas do individualismo, subjetivismo, da teoria racionalista do direito natural e do liberalismo, por meio do qual a ideia de direito subjetivo - e, dessa forma, dos direitos do homem - foi criada, desenvolvida e consolidada, que tais categorias não possuem somente um significado técnico-jurídico. Possuem também um sentido ético ou moral, político, ideológico e até mesmo mítico e simbólico. Além disso, é a estes significados ideológicos e simbólicos que devemos voltar nossa atenção principal, uma vez que, em última análise, são os que se mostram verdadeiramente relevantes no universo conceitual contemporâneo e nos ordenamentos jurídicos que os consagram.

O conceito de direitos humanos nasceu - ao menos, virtualmente - aberto ao conceito de transcendência do direito (mesmo tendo por base o racionalismo). Agora, tais direitos humanos foram transformados em meras reivindicações, garantidas em primeiro lugar contra a ordem das coisas, e codificados posteriormente em um novo tipo de ordenamento como "direitos civis", o qual, ainda que os limite, afirma-os indiscriminadamente com o auxílio das novas concepções. [46]

Capitalismo

O capitalismo começou a se desenvolver nos Países Baixos e na Inglaterra antes da Reforma Protestante, devido à transformação econômica que levou ao início da Revolução Industrial. Iniciou-se, também, com o declínio das corporações de ofício e suas antigas liberdades, por causa da centralização do Estado e da ascensão da burguesia como uma nova classe social. Mas o capitalismo nascente recebeu seu espírito do calvinismo. 

É sabido que tanto Lutero quanto Calvino negaram o livre-arbítrio do homem e, ao mesmo tempo, afirmaram a total depravação da natureza humana e, dessa forma, a inutilidade das obras para a salvação. Falamos anteriormente do estéril potencial histórico e político do luteranismo, uma vez que tornou todo o desenvolvimento da doutrina cristã impossível, baseando a fé exclusivamente nas Escrituras e recusando a autoridade da Tradição e dos Padres da Igreja. Essa religião fossilizada, sem qualquer dinamismo, recebeu um novo impulso com o espírito revoltoso de Calvino, que acrescentou aos elementos comuns do protestantismo um componente novo: a benção de Deus, administrada através das bençãos deste mundo, é um sinal de predestinação.

Daí a origem protestante e, especialmente, calvinista - de acordo com a afirmação de Max Weber [47] - da ética capitalista, precisamente o motivo da conversão do cisma anglicano em protestantismo. Sem o calvinismo, os novos meios industriais poderiam ter sido canalizados pela moralidade católica ao serviço do bem comum ao invés do bem puramente particular, e o mundo seria diferente. No entanto, o calvinismo desviou a nova economia e seus progressos industriais para uma mentalidade e uma psicologia de insegurança interna, insistindo que o indivíduo, como tal, enriqueça a si mesmo e, dessa maneira, simbolize sua salvação para o mundo todo, bem como para si mesmo.

O liberalismo, na sua forma econômica, derivou do espírito calvinista. Na Escócia, na Inglaterra, na Holanda e nos Estados Unidos, os calvinistas sempre foram grandes capitalistas. Na França, aliás, um país de maioria católica, uma parte muito importante das riquezas (sobretudo financeiras e industriais) sempre estiveram nas mãos dos protestantes. E é um fato que, ainda que o calvinismo tenha, doutrinalmente, perdido sua energia, manteve sua força como uma ética (a ética protestante); uma ética que colocou o trabalho numa posição de honra enquanto reduziu a contemplação e o lazer ao nível de epifenômenos. A História mostra isso abundantemente no resultado da Revolução Inglesa do século XVI, na porção dos Países Baixos durante o mesmo período, na Revolução Francesa e no confisco de bens da Igreja na Espanha no século XIX.

Uma visão panorâmica de distintos países europeus no século XVII nos permite fazer algumas observações importantes. [48] Na França de Luís XIV, por exemplo, a política de enriquecimento suntuoso favorecida pela Coroa serviu como uma ferramenta para a total e definitiva submissão da nobreza ao poder real, a qual vendeu-se pelo poder do dinheiro ao serviço da Coroa. E, se na França a monarquia possuía uma representação aristocrática fictícia, nos países que lutaram contra a França aconteceu um fenômeno paralelo.

Assim, na Holanda, uma burguesia mercantil carente de uma aristocracia e hostil à (aparente) aristocracia francesa apoiou os líderes de um protestantismo liberal que sustentou Spinoza. 

E, particularmente, na Inglaterra, onde - começando com a Revolução de 1688 e as transformações sociais que a seguiram - uma situação se desenvolveu quase ao reverso da França, uma vez que o poder acabou nas mãos de uma oligarquia calvinista de mercadores whigs que desalojaram os donos de terra tories e terminaram travestindo o poder do dinheiro num traje monárquico. A oligarquia liberal foi representada numa forma monárquica com sua igreja, estabelecida como "defensora da fé". A Inglaterra, no final do século XVII, era definitivamente um país protestante que tinha, como seus líderes, ricos comerciantes com aparência nobre, que conduziam negócios mercantis ao redor do mundo. Dessa maneira, poderíamos afirmar que a Inglaterra não era tanto uma monarquia quanto uma oligarquia representada num hábito monárquico. Como resultado, transformou-se no modelo para todas as monarquias constitucionais (e sistemas parlamentares, posteriormente): essa é a tese de Sombart, uma tese que todas as histórias econômicas confirmam mostrando a importância do comércio internacional de luxo no financiamento inicial do capitalismo, e o apoio inicial que o colonialismo deu à Revolução Industrial na Inglaterra, que não teria sido possível sem esse financiamento prévio.

Ao final do século XVIII veio a Grande Revolução na França, obra de uma burguesia rica divorciada da religião católica e profundamente influenciada pelo espírito protestante e capitalista que se estabeleceu ao longo do tempo. O indício disso pode ser encontrado no famoso lema de Guizot, "Enrichissez-vous!". Não há frase que simbolize mais cinicamente o casamento entre o espírito liberal e o calvinista. O bem maior é colocado nas coisas materiais deste mundo. Posteriormente, a doutrina liberal e calvinista abriria o caminho para o ateísmo e a reação marxista contra o capitalismo. 

A Espanha do século XIX também experimentou uma influência calvinista, ainda que indiretamente. O calvinismo, que não entrou na Espanha com rigor teológico, impactou através da cultura maçônica. O confisco de bens da Igreja repetiu o que havia acontecido na Inglaterra três séculos antes. Foi o que tem sido chamado de "imenso roubo" que criou uma classe proprietária a serviço da Revolução, rapidamente batizada de "moderada" e finalmente confirmada como "conservadora". O estopim para as Guerras Carlistas foi o enorme sustento que o liberalismo espanhol encontrou no capitalismo europeu, amparo que tornou possível a um punhado de maçons e burgueses, totalmente alheios ao apoio da população, tomarem o controle dos destinos do país. [49]

Rumo a uma conclusão 

Retornemos aos dois autores que nos ajudaram a introduzir o atual assunto.

O primeiro deles nos permite sumarizar a perplexidade da presente situação:
A idade moderna é essencialmente protestante e seu começo não deve ser fixado no aparecimento da imprensa (1440), nem na queda de Constantinopla (1453), nem na descoberta da América (1492), mas no levante luterano contra a Igreja (1517). O que nós não sabemos é quando a idade moderna acabou - o mundo "contemporâneo" sendo nada mais que sua prolongação -, uma vez que as declarações da "pós-modernidade" que circulam hoje pelo mundo não parecem corresponder realmente a uma nova era no curso da História. Similarmente, a esses movimentos "futuristas" de setenta anos atrás não se seguiu uma mudança histórica real e geral. Sim, há sintomas do colapso da ética não-confessional, do Estado e do pacifismo. Podemos até mesmo sentir a profunda insatisfação com os resultados do individualismo jurídico e com o positivismo legal, e certo alarme contra a loucura da imoralidade capitalista. Entretanto, nós não sabemos como esses fenômenos de exaustão geral terminarão, cristalizando uma nova forma de existência que pode permitir aos homens do futuro falarem sobre uma nova era histórica. Eu não sei. Os sinais do tempo me parecem inexplicavelmente contraditórios... [50]
O outro autor permite nos livrar de tal escrúpulo. Ele faz isso evocando a lenda de Supay, da antiga mitologia inca. É dito que a imensa cadeia de montanhas onde hoje moram os povos bolivianos era, em tempos remotos, uma planície coberta por árvores nas quais pássaros de diversas plumagens faziam seus ninhos. O pai Deus-Sol olhou para baixo com prazer pela própria grandeza, e a Deusa-Lua apenas olhou para os mortais com o canto do olho enquanto subia no céu.

Um dia, um índio como qualquer outro fabricou uma flauta e começou a tocá-la e, ao fazê-lo, a natureza ganhou novo vigor: as árvores cresceram, os rios se encheram com mais água, os pássaros cantaram com mais força por conta da música encantada da pequena flauta. Noutro dia, o mesmo índio, conhecendo sua força, quis testá-la mais além. Tocou sua flauta com tal energia que, em sua exaltação, a natureza ganhou vida a tal ponto que perdeu seu ritmo. Então, as montanhas caíram sobre os vales, os rios transbordaram, as árvores caíram no abismo e a humanidade estava a ponto de perecer. 

Deus-Sol, olhando para baixo a partir das alturas, viu o que o pequeno Supay havia feito, desceu para a terra e tentou refazer sua obra, mas sem sucesso, por causa da destruição em larga escala que havia sido feita. Tomando a flauta em suas mãos, quebrou contra uma rocha. O pequeno Supay, então, foi de cidade em cidade, como uma alma sem luz, carregando uma pesada bolsa no ombro na qual estavam todas as doenças e todas as calamidades imagináveis, inclusive a morte. Assim as coisas continuaram por séculos, até que homens barbudos vestidos de ferro chegaram naquelas terras e Supay, transformado num defensor da terra que destruíra, passou a proteger os índios contra esses homens.

Essa lenda reflete exatamente a situação do protestantismo em relação ao Ocidente. Algumas igrejas protestantes lutaram contra o comunismo no passado recente, e - adicionemos - outras defendem hoje a lei natural a respeito da vida e do matrimônio. No entanto, tais ações carecem de seu conteúdo adequado:
O Ocidente era a Cristandade medieval, e foi isso que o Supay chamado Lutero destruiu. Ele quer, agora, proteger a mesma obra que contribuiu para destruir contra os homens que chegaram do Oriente. Ele espalhou a doença e agora quer curá-la. Do ponto de vista da pura lógica, o trabalho de Supay é o mais desprovido de sentido dentre todos - não do Supay nascido na Bolívia, mas do Supay que vestiu um capuz de frei agostiniano e nasceu numa cidade alemã chamada Eisleben. 

*Tradução livre (a partir do inglês) do capítulo The Protestant Matrix for Modern Politics and Rights, contante no livro Luther and His Progeny: 500 Years of Protestantism and Its Consequences for Church, State, and Society, editado por John C. Rao,


NOTAS:

[1] Cf. Álvaro d’Ors, “Retrospectiva de mis últimos XXV años”, Atlántida (Madrid) n.13 (1990): 90–99.
[2] Francisco Elías de Tejada, La monarquía tradicional (Madrid: Rialp, 1954), 38.
[3] Ibid., 37.
[4] Cf. Miguel Ayuso, “Spanish Carlism: An Introduction”, em A Catholic Witness in our Time: A Festschrift in Honor of Dr. Robert Hickson (Fitzwilliam, NH: Loreto Publications, 2015), 325–48.
[5] Christopher Dawson, The Making of Europe. An Introduction to the History of European Unity (London: Sheed and Ward, 1939), 284–90. Elías de Tejada, no livro citado anteriormente, fez algumas críticas a respeito da explicação de Dawson. E ele, ao final, sem mencionar a disputa, publicou um livreto apenas em espanhol: España y Europa (Madrid: Punta Europa, 1959).
[6] Ver Augusto Del Noce, The Crisis of Modernity (Montreal-Kingston-London-Ithaca, McGill: Queen’s University Press, 2014). Mas a modernidade não é divisível, responde Danilo Castellano. Cf. Bernard Dumont, Miguel Ayuso, e Danilo Castellano, eds., Eglise et politique. Changer de paradime (Perpignan: Artège, 2013).
[7] Christopher Dawson, España y Europa, 11–12.
[8] Álvaro d’Ors, “Prefácio” à edição espanhola de Romano Guardini, Der Heilbringer in Mythos, Offenbarung und Politik (Madrid: Rialp, 1948).
[9] Rafael Gambra, “Comunidad o coexistencia”, Verbo (Madrid) nn. 101–02 (1972): 52. Eu desenvolvi o argumento em “From State to Clubs (Passing through Civil Society),” in Eoin Cassidy, ed., Community, Constitution, Ethos (Dublin: Otoir Press, 2008).
[10] Frederick D. Wilhelmsen, El problema de Occidente y los cristianos (Seville: ECESA, 1964), 22. Esse livro, escrito pelo autor diretamente em espanhol, é um valioso manual de filosofia e teologia da História. Ver também: Frederick D. Wilhelmsen, Christianity and Political Philosophy (Athens: University of Georgia Press, 1978), 129 ff. e 174 ff. Dois capítulos são especialmente interessantes para nós: “Donoso Cortés and the Meaning of Political Power” and “The Natural Law Tradition and the American Political Experience.”
[11] Cf. Frederick D. Wilhelmsen, The Metaphysics of Love (New York: Sheed and Ward, 1962), por uma profunda interpretação do Barroco e, em particular, do barroco espanhol. Ver também: Alberto Wagner De Reyna, “Barroquismo y vocación de Iberoamérica”, Reconquista (São Paulo) n.2 (1950): 97 ff.
[12] Juan Manuel De Prada, “La victoria de Don Quijote”, XL Semanal (Madrid), 27 de março 2016.
[13] Cf. Brad S. Gregory, The Unintended Reformation: How a Religious Revolution Secularized Society (Cambridge, Massachusetts e Londres: The Belknap Press da Harvard University Press, 2012).
[14] Francisco Elías De Tejada, “El derecho natural, fundamento de la civilización”, Revista Chilena de Derecho (Santiago) n.1 (1974): 290.
[15] Frederick D. Wilhelmsen, El problema de Occidente y los cristianos, 39 ff.
[16] John Rao, Americanism and the Collapse of the Church in the United States (St Paul, MN: Remnant Press, 1984).
[17] Ver meus livros: ¿Después del Leviathan? Sobre el Estado y su signo (Madrid: Speiro, 1996); ¿Ocaso o eclipse del Estado? Las transformaciones del derecho público en la era de la globalización (Madrid: Marcial Pons, 2005), e El Estado en su laberinto. Las transformaciones de la política contemporánea (Barcelona: Scire, 2011).
[18] Carl Schmitt, “Staat als ein konkreter, an eine geschichtliche Epoche gebundener Begriff” (1941), em seu vol. Verfassungsrechtliche Aufsätze aus den Jahren 1924–1954. Materialen zu einer Verfassungslehre (Berlim: Duncker und Humblot, 1958), 375 et seq.; e Der Nomos der Erde im Volkerrecht des Jus Publicum Europaeum (Köln: Greven, 1950).
[19] Cf. Ernst-Wolfgang Böckenförde, Die deutsche verfassungsgeschichtliche Forschung im 19 Jahrhundert (Berlim: Duncker und Humblot, 1961).
[20] Cf. Bertrand de Jouvenel, Du pouvoir. Histoire naturelle de sa croissance (Genève: Éditions du Cheval, 1945), e Francesco Gentile, Intelligenza politica e ragion di Stato (Pádua: CEDAM, 2000).
[21] Manuel Garcia Pelayo, Del mito y la razón en el pensamiento político (Madrid: Revista de Occidente, 1968), e Idea de la política y otros escritos (Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983); Richard H.S. Crossman, “The Beginnings of the Modern State”, in Government and the Governed. A History of Political Ideas and Political Practise (Londres: Christopher, 1939); Friedrich August von der Heydte, Die Geburtsstunde des souveränen Staates (Regensburg: Josef Abbel Verlag, 1952); Gioele Solari, La formazione storica e filosofica dello stato moderno (Turim: Giappichelli, 1962); José Pedro Galvão De Sousa, O totalitarismo nas origens da moderna teoria do Estado (São Paulo: Saraiva, 1972); Bertrand de Jouvenel, Les débuts de l’Etat moderne (Paris: Fayard, 1976).
[22] Michel Senellart, Les arts de gouverner. Du “regimen” medieval au concept de gouvernement (Paris: Seuil, 1995).
[23] Álvaro d’Ors, Una introducción al estudio del derecho (Madrid: Rialp, 8a edição, 1982), 118–19.
[24] Cf. Francisco Elías De Tejada, Sacrum Imperium und überstaatliche Ordnung (Eichstätt: Abenländische Akademie, 1952).
[25] Wilhelmsen, El problema de Occidente y los cristianos, 28–29.
[26] Dalmacio Negro, Gobierno y Estado (Madrid: Marcial Pons, 2002), 23.
[27] Danilo Castellano, “Prime considerazioni a propósito della ‘riabilitazione’ di Lutero”, Instaurare (Údine) vol. XLIV, n.2 (2015): 9.
[28] Juan Antonio Widow, La libertad y sus servidumbres (Santiago de Chile: RIL, 2014), cit., 239 ff.
[29] Ibid., 237.
[30] Danilo Castellano, “Prime considerazioni a propósito della ‘riabilitazione’ di Lutero”, 11.
[31] Danilo Castellano, “Qué es el liberalismo”, Verbo (Madrid) n.489–90 (2014): 730–31.
[32] Ibid., 731. Ver Julio Alvear, La libertad moderna de conciencia y religión. El problema de su fundamento (Madrid: Marcial Pons, 2013).
[33] Wilhelmsen, El problema de Occidente y los cristianos, 51.
[34] Cf. Alain Sériaux, Le droit natural (Paris: PUF, 1993); Juan Vallet De Goytisolo, “Introducción al derecho y a los denominados derechos humanos”, Verbo (Madrid) n.259–60 (1987): 1017 ff.
[35] São Tomás de Aquino, S. Th. II-II, 57, 1, ad 1.
[36] Cf. Miguel Ayuso, De la ley a la ley. Cinco lecciones sobre legalidad y legitimidad (Madrid: Marcial Pons, 2001); Michel Bastit, Naissance de la loi moderne (Paris: PUF, 1990).
[37] São Tomás, S. Th., II–II, 57, 1, ad 2.
[38] Francisco de Vitória, De iustitia, 57, 1, 7.
[39] Francisco Suárez, De legibus, I, 2, 5.
[40] Cf. Michel Villey, Leçons d’histoire de philosophie de droit (Paris, Dalloz, 1957), e Seize essais de philosophie de droit (Paris, Dalloz, 1969).
[41] Álvaro d’Ors, Una introducción al estudio del derecho, 33.
[42] Gaius, Instituta, I, 3, 13 pr.; and D, 44. 7. 3 pr.
[43] Francisco Suarez, De legibus, I, 2, 2.
[44] Louis Lachance, Le droit et les droits de l’homme (Paris: PUF, 1959), 146 ff.
[45] Ibid., 160 e 148.
[46] Danilo Castellano, “El derecho y los derechos en las Constituciones y Declaraciones contemporáneas”, Verbo (Madrid) núm. 533–34 (2015): 326.
[47] Max Weber, Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus, primeira edição em 1904–1905.
[48] Eu sigo Francisco Canals, Mundo de Dios y Reino histórico (Barcelona: Scire, 2005), 72 ff.
[49] Ver novamente meu “Spanish Carlism: An Introduction”, citado acima.
[50] Álvaro d’Ors, “Retrospectiva de mis últimos XXV años”, 99.
[51] Francisco Elias De Tejada, Consecuencias del protestantismo (Salamanca: Congregación Mariana Universitaria, 1949), 8–9.


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