quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Como costumamos rezar?

Refletindo acerca do início da Paixão do Senhor no Horto das Oliveiras, São Thomas More nos adverte sobre o modo como oramos em seu De Tristitia Christi*


Cristo no Getsémani, por Heinrich Hofmann (1886)

Para ensinar que no perigo ou na dificuldade que se acerca devemos pedir a outros que vigiem e que rezem, colocando, ao mesmo tempo, nossa confiança somente em Deus, e também com a intenção de mostrar que Ele tomaria o amargo cálice da Cruz sozinho, sem nenhuma companhia [1], ordenou àqueles três apóstolos [Pedro, Tiago e João], que Cristo havia escolhido entre os onze e levado ao pé do monte, que ficassem ali, firmes e vigiando com Ele; mas Ele próprio se afastou, tomando a distância de um tiro de pedra [2]: "Adiantou-se um pouco e, prostrando-se com a face por terra, assim rezou: 'Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia, não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres'." [3]

O que nos ensina primeiramente Cristo Rei a quem queira lutar por Ele, e com Seu próprio exemplo, é a virtude da humildade, fundamento das demais virtudes e que permite almejar os objetivos mais altos com segurança. Sendo Cristo, enquanto Deus, igual ao Pai, se apresenta perante Deus Pai humildemente por ser também homem, e assim se prostra no solo [4].

Paremos brevemente, leitor, neste lugar para contemplar com devoção nosso Rei, prostrado em terra nessa atitude suplicante. Se o fizermos atenciosamente, um raio daquela luz que ilumina todo homem que vem a este mundo [5] iluminará nossas inteligências e veremos, reconheceremos, e tomaremos as dores e, em algum momento, chegaremos a corrigir não a negligência, a preguiça ou a apatia de nossa vida, mas a debilidade, a estupidez total, a idiotice ou insensatez com a qual nos dirigimos a Deus Todo-poderoso. Ao invés de rezar com reverência, nos acercamos Dele relutantemente, preguiçosamente e quase adormecidos; temo muitíssimo de que assim não só não O satisfazemos e não ganhamos Seu favor, como também O irritamos e até mesmo provocamos seriamente Sua ira.

Seria muito desejável que, vez ou outra, fizéssemos um esforço especial, imediatamente depois de acabar um momento de oração, para trazer de novo à memória tudo o que pensamos durante o tempo no qual estivemos rezando. Que loucuras e tolices veríamos ali? Quanta distração vã - e, algumas vezes, até asquerosidades - poderíamos perceber? Ficaremos verdadeiramente assombrados ao percebermos que tudo isso fora possível; de que, em tão curto espaço de tempo, pôde a imaginação dissipar-se por lugares tão díspares e distantes entre si; ou por tantos assuntos e coisas tão variadas como carentes de importância. Se alguém (como quem faz um experimento) se esforçasse para distrair-se no maior grau possível e da maneira mais desordenada, estou seguro de que não conseguiria fazê-lo tão bem como de fato faz nossa imaginação quando, deixada livre, desvaria por todas as partes enquanto a boca murmura as horas do Ofício e outras orações vocais muito utilizadas. 

Assim, se alguém se questiona ou tem alguma dúvida sobre a atividade da sua mente enquanto os sonhos conquistam a consciência ao dormir, não encontro melhor comparação que esta: a mente se ocupa da mesma maneira que se ocupam as mentes daqueles que estão despertos (se é possível dizer que estão "despertos" os que rezam dessa forma), mas cujos pensamentos vagam descontroladamente durante a oração, agitando-se impetuosamente sobre fantasias absurdas. Mas há uma diferença em relação ao que sonha dormindo, pois algumas das estranhas visões do que sonha desperto (rezando) e que sua imaginação abraça em suas viagens enquanto a língua corre pelas orações como se fossem sons desprovidos de sentido [6] são monstruosidades tão sujas e abomináveis que, se tivessem sido vistas dormindo, certamente ninguém, por mais desavergonhado que fosse, atreveria-se a contá-las ao despertar, nem sequer entre um grupo de descarados. 

E o velho provérbio é, sem dúvida, verdadeiro: "O rosto é o espelho da alma" [7]. Com efeito, esse estado de desordem e insensatez da mente se reflete nitidamente nos olhos, nas bochechas, nas pálpebras e nas sobrancelhas, nas mãos e nos pés; em suma, no corpo inteiro [8]. Quando nossa cabeça deixa de prestar atenção quando rezamos, ocorre um fenômeno parecido com a postura corporal. 

Pretendemos, por exemplo, que a razão para vestir trajes mais ricos que os corriqueiros nos dias de festa é o culto a Deus, mas a negligência com a qual rezamos mostra claramente nosso fracasso no intento de encobrir o motivo verdadeiro, a saber, um altivo e vaidoso desejo de luzirmos perante os demais. Em nossa negligência, andamos de um lado a outro e às vezes nos sentamos num banco. E, mesmo quando nos ajoelhamos, procuramos nos apoiar sobre um só joelho, levantando a outra perna  e descansando, assim, sobre o pé; ou colocamos uma almofada sob os joelhos e, às vezes (se somos realmente frouxos), buscamos apoiar até mesmo os cotovelos sobre uma almofada confortável. Com toda essa precaução, parecemos uma casa em ruínas prestes a desabar a qualquer momento.

No que se refere à nossa conduta, as próprias coisas que fazemos nos traem de mil maneiras, mostrando que a cabeça está ocupada em algo muito alheio à oração. Coçamos a cabeça, limpamos e cortamos as unhas e cutucamos o nariz enquanto nos equivocamos sobre o que devemos responder. Não lembrando do que nós já dissemos e do que nós não dissemos, palpitamos sobre o que resta dizer. Acaso não nos envergonha rezar num estado mental e corporal tão desordenado? Como é possível que nos comportemos assim em algo tão importante para nós como a oração? É dessa maneira que pedimos perdão pelas nossas faltas, suplicando a Deus que nos livre do castigo eterno? Mesmo se não tivéssemos pecado antes, ainda mereceríamos o tormento eterno por termos nos aproximado da majestade de Deus com tão pouco apreço. 

Imagineis, se quiserdes, que cometestes um crime de alta traição contra um príncipe ou contra alguém que tem vossa vida em suas mãos, mas tão misericordioso que está disposto a acalmar sua indignação se vos vê arrependidos e em atitude de humilde súplica. Imagineis que está decidido a comutar a sentença de morte por uma multa ou, até mesmo, a perdoar totalmente a ofensa sob a condição única de que lhe mostreis indícios convincentes de vergonha e dor. Suponde agora que, levados perante a presença do príncipe, vos adianteis e comeceis a falar sem cuidado, sem interesse algum, como a quem nada do que se passa importa; enquanto ele está quieto em seu lugar e escuta com atenção, vós vos moveis passeando de um lado a outro enquanto expondes vossa situação. Cansados de perambular, vos sentais em uma cadeira; ou, se a cortesia e a educação exige que vos rebaixeis e ajoelheis no solo, mandais primeiro que alguém venha e coloque uma almofada confortável sob os joelhos; ou, melhor ainda, lhe pedis que traga um genuflexório com mais almofadas para que apoieis os cotovelos. Então, começais a bocejar, a espreguiçar, a espirrar, a cuspir e a arrotar sem qualquer cuidado, expulsando os vapores da gula. Enfim, começais a comportar-vos de tal modo que o príncipe possa ver com clareza no vosso rosto, na vossa voz, nos vossos gestos e em toda a vossa postura corporal que, enquanto vos dirigis a ele, vossa cabeça está em coisas e assuntos muito distintos. Dizeis-me: que sucesso poderíeis esperar de tal modo de rogar?

Consideraríamos, sem dúvida alguma, absurdo e insensato nos defendermos assim ante um príncipe da terra por um delito que pede a pena capital. E um tal poderoso, uma vez destruído nosso corpo, nada mais pode fazer. Poderemos então, por acaso, pensar que estamos em nosso são juízo se, tendo nos surpreendido cometendo uma série de crimes muito mais sérios, pedimos perdão tão altiva e desdenhosamente ao Rei dos reis [9], ao próprio Deus que tem poder, uma vez destruído o corpo, de mandar corpo e alma juntos ao inferno? [10]

Não desejo que ninguém interprete o que digo pensando que proíbo rezar passeando ou estando sentado ou até mesmo comodamente deitado. Não. E, de fato, como eu gostaria que qualquer coisa que fizéssemos e em qualquer postura do corpo estivéssemos, ao mesmo tempo, elevando constantemente nossas mentes a Deus, pois é esse tipo de oração que mais Lhe agrada. Pouco importa para onde se dirigem nossos passos se nossas mentes estão postas no Senhor. Nem importa que andemos, pois nunca nos afastaremos bastante dAquele que está presente em todas as partes [11]. Mas, da mesma maneira que aquele profeta disse a Deus "quando, no leito, me vem vossa lembrança, passo a noite toda pensando em vós" [12] e não se contentou com isso, mas levantou-se "em meio à noite para render homenagem ao Senhor" [13], assim sugeriria eu que, para além daquilo que rezamos ao andar, façamos também orações para as quais preparamos nossas mentes com mais reflexão, e para as quais dispomos nosso corpo com mais respeito e reverência do que se tivéssemos que nos apresentar perante todos os reis da terra reunidos num mesmo lugar. 

Em verdade hei de afirmar que, quando penso em nossa dissipação mental durante a oração, minha alma dói e se enche de desgosto.

De qualquer maneira, não podemos esquecer que alguns pensamentos que vêm enquanto rezamos podem ser sugestões de um espírito maligno, ou vieram à imaginação pelo natural funcionamento dos sentidos. Nenhuma dessas distrações, por mais vis e horríveis que sejam, é falta grave se resistimos e a afastamos. Mas, ao contrário, se a aceitamos com gosto ou, por negligência, permitimos que cresça em intensidade durante um longo período de tempo, não tenho a mínima dúvida de que sua força pode aumentar de tal modo que seja fatalmente destrutiva à alma.

Ao considerar a glória imensurável da majestade de Deus, vejo-me obrigado a pensar que, se essas distrações da mente não são delitos puníveis com a morte, isso só se deve ao fato de que Deus, em Sua misericórdia e bondade, não quer exigir a morte por elas, porque a malícia que lhes é inerente faz com que sejam merecedoras de tal castigo, e eis a razão: não consigo imaginar como tais pensamentos aparecem na mente dos homens enquanto rezam (quer dizer, quando falam com Deus) senão por falta de fé ou porque a fé é muito fraca. Se procuramos não nos distrair enquanto falamos com um príncipe mortal sobre algum tema importante, ou com algum de seus ministros em posição de certa influência, jamais deveríamos nos distrair o mínimo que fosse enquanto falamos com Deus, não se acreditássemos com uma forte e ativa fé que estamos na presença de Deus, o qual não somente escuta nossas palavras e vê nossas feições e posturas como sinais externos do nosso estado interior, como ainda penetra nos rincões mais secretos e recônditos do coração com uma visão mais aguda que os olhos de Linceu [14] e ilumina tudo com a infinita claridade da Sua majestade. Não ocorreriam tais distrações, repito, se acreditássemos que Deus está presente, aquele Deus em cuja gloriosa presença todos os poderosos do mundo, com toda a sua glória [15], devem confessar (a não ser que estejam loucos) não serem mais que vermes depreciáveis. 

Por conseguinte, uma vez que Nosso Salvador Jesus Cristo viu que nada é mais proveitoso que a oração, e também que esse meio de salvação seria frequentemente infrutífero por causa da negligência dos homens e da malícia dos demônios - de tal maneira que, às vezes, seria pervertido em meio de destruição -, decidiu Ele mesmo aproveitar essa oportunidade, em Seu caminho para a morte, para reforçar Seu ensinamento com a palavra e com o próprio exemplo, dando os toques finais neste ponto tão necessário, assim como fez com as outras partes da Sua doutrina.

Desejava que soubéssemos bem que temos de servir a Deus não somente com a alma, mas também com o corpo, pois ambos foram criados por Ele. Quis igualmente nos ensinar que uma atitude respeitosa e reverente do corpo, ainda que tenha sua origem e caráter a partir da alma, aumenta, como em reflexo, a reverência e a devoção da própria alma para com Deus. Ele quis, assim, mostrar a mais humilde forma de sujeição e venerou Seu Pai que está no Céu com uma postura corporal que nenhum príncipe da terra ousou reclamar, nem aceitou para si quando oferecida livremente, exceto o ébrio e devasso macedônio [Alexandre] e alguns outros bárbaros que, ensoberbecidos pelos triunfos, pensaram que deveriam ser venerados como deuses.


*Tradução livre a partir da edição de Yale (New Haven e Londres) das obras de São Thomas More: The Tower Works: Devotional Writings - edição por Garry E. Haupt, 1980; e da edição espanhola La agonía de Cristo das Ediciones Rialp (Madri), preparada por Alvaro de Silva.


NOTAS:

1. Is. 63, 3.
2. Lc. 22, 41.
3. Mt. 26, 39; Mc. 14, 35-36.
4. Cf. Fp. 2, 5-7.
5. Jo. 1, 9.
6. Virgílio, Eneida 10, 640.
7. Cícero, De oratore 3, 59, 221.
8. Cf. Cícero, Pis., 1, 1.
9. Cf. 1 Tim. 6, 15; Rev. 19, 16.
10. Lc. 12, 4; Mt. 10, 28.
11. Cf. Jer. 23, 23-24.
12. Sl. 118, 62.
13. Sl. 62, 7.
14. Cf. Jer. 17, 9-10. Linceu, um dos Argonautas, era famoso pela sua visão aguda.
15. Cf. Mt. 6, 29; Lc. 12, 27.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Non praevalebunt: as agitações na Barca de Pedro e o “tradicionalismo”

"A Tempestade no Mar da Galileia", de Rembrandt Não sou um exímio especialista na Crise da Igreja, não sou teólogo ou filósofo, nã...