sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Instrução espiritual acerca da morte

Escrita por São Thomas More enquanto estava na prisão na Torre de Londres, em 1534 

Capela dos Crânios em Czermna, Polônia (1776)

Quem salvar a sua vida de um modo que ofenda a Deus, muito em breve chegará a odiá-la. Pois se dessa forma salvares a tua vida, aborrecê-la-á com tal ódio no dia seguinte que te entristecerá que a morte não te tenha levado um dia antes. Que hás de morrer, é algo de que sem dúvida alguma te lembrarás: mas como ou quando, não o sabes de modo algum. Razão tens para temer, não seja que depois desses adiamentos se sigam os tormentos sem fim no inferno, onde os homens desejarão morrer e a morte fugirá deles [cfr. Apoc 9, 6]; ao passo que, ao sofrimento da morte que tanto aborreces, ter-se-iam seguido sem nenhuma dúvida as alegrias do céu. 

Que insensatez é esta de pretender evitar a morte temporal para cair numa morte que dura para sempre? E, para cúmulo, não escaparás da temporal senão por algum tempo: é mero adiamento. Por acaso pensas que, se escapares agora da morte, já a terás vencido para sempre? Ou julgas talvez que morrerás, sim, noutro momento, mas sem dor? Pelo contrário, pode ser que te aconteça aquilo que aconteceu com aquele homem rico que prometia a si mesmo uma vida muito longa; Cristo recordou-lhe: “Insensato, nesta mesma noite virão buscar a tua vida” [cfr. Lc 12, 20]. 

Além disso, sabes com certeza que um dia terás de morrer, e também que não podes ter uma vida longuíssima, pois a vida do homem sobre a terra é muito breve. Finalmente, suponho que não duvidas de que, quando chegar o momento em que estiveres doente e acamado, começarás a sentir as angústias da morte que se aproxima e desejarás que, pela salvação da tua alma, tivesses padecido uma morte cruel e terrível muito antes. Não há razão, portanto, para temeres tão desesperadamente que aconteça aquilo que, como sabes muito bem, um pouco mais tarde desejarias que tivesse acontecido antes. 

Os que padecem pela vontade de Deus, que recomendem as suas almas ao seu fiel Criador [cfr; 1 Pe 4, 19]. Queridíssimos, quando Deus vos provar com o fogo das tribulações, não estranheis, como se vos acontecesse uma coisa muito extraordinária; antes, alegrai-vos por participardes da paixão de Cristo, para que, quando se revelar a sua glória, vós vos alegreis também com Ele cheios de júbilo [cfr; 1 Pe 4, 12-13]. Deveriam envergonhar-se os homens bons de serem mais timoratos em fazer o bem do que os homens maus em fazer o mal. Não seria impossível ouvir um ladrão dizer sem hesitação que seria um covarde quem vacilasse em sofrer meia hora pendurado, se depois pudesse viver sete anos de prazer e desafogo. E que vergonha seria então para um homem cristão perder a vida e a felicidade eternas, só para não padecer uma morte rápida antes do tempo! Sabendo, além disso, e muito bem, que há de sofrê-la de uma forma ou de outra, e dentro em pouco, e que, a não ser que se arrependa a tempo, imediatamente depois da sua morte temporal cairá na morte eterna, muito mais horrível do que qualquer outra morte. 

Se o ser humano pudesse ver um desses demônios que em grande número nos vigiam diariamente, desejando atormentar-nos para sempre no inferno, bastaria o medo desse único diabo para não dar nenhuma importância a todas as ameaças mais terríveis que se possam imaginar. E muito menos lhe importariam, se pudesse contemplar os céus abertos e Jesus ali sentado, como o viu o bem-aventurado Estevão [cfr. At 7, 55-56] 

O vosso inimigo, o diabo, anda girando ao vosso redor como um leão que ruge, em busca de uma presa que devorar [cfr. 1 Pe 5, 8]. Bernardo [Sermão XIII, sobre o Sl 90] diz: Agradeço humildemente ao grande leão da tribo de Judá; bem pode rugir esse outro leão, mas não pode morder-me. Por mais que nos ameace, não sejamos tão covardes que só pelos seus rugidos caiamos prostrados ao chão. Seria de verdade um animal e desprovido de inteligência que fosse tão pusilânime que se entregasse só por medo, ou que ficasse tão desconcertado com a vã imaginação das dores que talvez tenha de sofrer que, ao simples toque da trombeta, ainda antes de começar a batalha, já estivesse vencido por completo. Porque ainda não resististes até derramar o sangue [cfr. Hebr 12, 4], diz aquele valente capitão que bem sabia que os rugidos desse leão não eram coisa de que se chegasse a morrer. E outro diz: Resisti ao diabo e fugirá de vós [cfr. Ti 4, 7]. Resisti-lhe firmes na fé [cfr. 1 Pe 5, 9]. 

Aqueles que, tendo abandonado a esperança em Deus, vão em busca de auxílio nos homens, hão de perder-se, como advertiu Isaías (cap. 31). Assim pereceu o rei Saul que, por não ter recebido imediatamente o que era do seu agrado, impaciente, murmurando e desesperando de Deus, acabou por buscar o conselho de uma feiticeira, ele que havia decretado com edito público que todas as feiticeiras deviam ser castigadas [cfr. 1 Re 28, 2-25]. 

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