domingo, 29 de setembro de 2019

A ação política deve ser católica?

Importante artigo de José Miguel Gambra para a revista Verbo, nº 407-408. Tradução livre do espanhol.


Reunião da Frente Patriótica (1936), partido do Chanceler Engelbert Dollfuss da Áustria. Considerado por muitos como um dos poucos líderes verdadeiramente católicos que o século XX presenciou, seu governo foi inspirado nos princípios da encíclica Quadragesimo Anno de Pio XI.


A pergunta que dá título a este escrito é "se a vida política deve ser católica". Agora bem, cabe entender a pergunta ao menos de duas maneiras:

1. As ações do estado devem submeter-se à lei natural, reflexo na consciência da lei de Deus, ou não?

2. O Estado ou o governo civil, sem prejuízo da liberdade que deve ter em matérias de sua competência, deve reconhecer a religião católica como única verdadeira, beneficiando seu trabalho e submetendo-se à sua autoridade nas matérias mistas, ou não?

A primeira dessas questões se refere aos atos de governo, como os de legislar ou manter a ordem; a segunda, ao título ou aos princípios pelos quais [ele] reconhece estar regido. 

Vou tratar de enumerar algumas das respostas que hoje daria um batizado a essas perguntas e esboçar as razões em que se apoiam. E digo batizado porque, se se fazem tais perguntas ao que não é católico de qualquer maneira, já sabemos qual é sua resposta. 

O magistério ordinário e extraordinário da Igreja, até algumas décadas, respondeu inequivocadamente sim à segunda dessas perguntas e, dessa forma, também à primeira: o governo tem não só que cumprir com a lei natural, expressão da lei eterna na consciência humana, como também deve ser confessionalmente católico. Quer dizer, deve reconhecer em seus princípios ou constituição que a religião católica é a única verdadeira e que é obrigação do governo favorecer a ação da Igreja e impedir a propagação de outras religiões, sem forçar ninguém a abraçar a fé católica. Ainda que o dever de procurar essa confessionalidade do Estado e a unidade religiosa seja inalterável e incondicionado, sua aplicação é prudencial e precisa levar em consideração as circunstâncias, de modo que, evidentemente, o mesmo só é aplicável no caso de sociedades católicas, mas não nas quais os católicos são minoria. Nas últimas, o governante católico só tem a obrigação de que as ações políticas sejam conformes à lei natural e de conceder à Igreja a liberdade necessária para que exerça seu ministério. O fundamento sobre o qual se assenta o dever da sociedade e do Estado de "render culto a Deus, piedosa e santamente", como dizia Leão XIII, radica no seguinte: a sociedade, tão necessária e benéfica para o homem, procede de Deus, bem como o homem; de tal maneira, se esse tem tal dever, não menos o tem a sociedade. 

A doutrina contrária à apresentada é a do liberalismo católico: sua resposta a ambas perguntas é negativa. Igreja e Estado, religião e política, como a ciência e a teologia, são âmbitos distintos, completamente separados ou alheios um ao outro. Uma política católica é, para eles, um absurdo similar a um raciocínio perfumado ou a uma pedra sentimental. 

Vejamos, por sumariamente que seja, sobre que bases chegaram a semelhante conclusão. O liberalismo católico, enquanto doutrina política, é um dos aspectos do modernismo ou do progressismo. Tal filosofia vem a ser uma espécie de versão cristã da ideia motriz pertencente à maior parte das filosofias do século XIX: a ideia de que a história dirige a humanidade para níveis de maior perfeição em todas as ordens. Os modernistas, conformes a essa teoria, vêm a manter uma espécie de gnosticismo evolutivo, segundo o qual o cristianismo, bem como todos os demais movimentos espirituais, conflui inexoravelmente em um saber religioso superior, ou gnosis, que superará e assumirá todos eles no futuro.

Em consonância com semelhante gnosticismo, pensam que qualquer filosofia ou movimento espiritual, por mais males que produza ou erros que contenha, sempre implicou num aprofundamento que supera a etapa anterior, permitindo elevar a humanidade a um novo escalão. E, uma destas doutrinas modernas que, segundo eles, permite um melhor entendimento do cristianismo, é a divisão do homem mesmo em dois aspectos ou vertentes, que uns chamam indivíduo e cidadão; outros, indivíduo e pessoa. Poderíamos dizer que o homem é uma espécie de ser bifronte que obra, de acordo com suas facetas, em mundos díspares que não se comunicam: uma dessas facetas é a consciência privada ou interior; a outra atua no mundo dos acontecimentos físicos ou fenomênicos. Pois bem, segundo eles, a religião pertence ao âmbito privado da consciência, enquanto a ação política é tarefa do cidadão ou do indivíduo: o indivíduo para a cidade e a pessoa para Deus, dizia Maritain. 

O pior de tal concepção reside na redução de Deus à categoria de representação ou conteúdo de nossa consciência, que levou a cabo a filosofia moderna. Deus não é, como para o catolicismo verdadeiro, uma coisa individual, distinta de nós mesmos, da qual tudo procede e ao que tudo deve se encaminhar, incluída a sociedade e o Estado. Ao contrário, Deus é só o resultado de um sentimento surgido do homem, uma manifestação da subjetividade, um valor humano. A Bíblia viria a ser como um conto qualquer, parecido com O Senhor dos Anéis ou Guerra nas Estrelas, e os mandamentos algo similar às regras de um jogo de RPG. As reuniões e associações privadas que os indivíduos podem formar em torno de tais ideias são, desde a perspectiva do cidadão ou do Estado, admissíveis, com a condição de que não pretendam influir na sociedade civil, pertencente ao âmbito da realidade fenomênica. 

Os progressistas ou modernistas, em suma, se defendem a aconfessionalidade do Estado e deixaram de ansiar que Cristo reine sobre a sociedade, é porque perderam a fé, precisamente porque converteram Deus em uma opção ou em um valor subjetivo da consciência. Para constatá-lo, não é necessário trazer à baila o testemunho dos papas dos séculos XIX e XX, que viam no modernismo o compêndio de todas as heresias; basta apenas consultar um pensador pouquíssimo favorável ao catolicismo, como Heidegger. O mesmo, em uma curiosa página de Sendas Perdidas, parece culpar os clérigos modernistas pelo assassinato de Deus, proclamado por Nietzsche como o culminar da modernidade:
"O último golpe contra Deus (expressado pela famosa frase de Nietzsche 'Deus está morto e nós o matamos'...) consiste em que Deus, o existente do existente, se rebaixe à condição de valor... Esse golpe não vem dos profanos que não creem em Deus, mas dos crentes e seus teólogos que falam do mais existente do existente (quer dizer, de Deus) sem lhes ocorrer pensar no ser mesmo (isto é, sem pensá-lo como real, mas apenas como valor) para darem-se conta, assim, de que esse pensar e esse falar é, visto a partir da fé, simplesmente sacrílego se se imiscuem na teologia do crer."
Finalmente, em nossos dias, há uma classe de católicos que defende o dever do Estado de acomodar suas leis e atuação à lei natural, mas nega ou cala que deva reconhecer em seu ordenamento jurídico, em sua constituição, a religião católica como única verdadeira. São pessoas de fé que mantêm como reais os conteúdos da Revelação, no que diferem radicalmente do catolicismo liberal. São, às vezes, pessoas dedicadas, que trabalham com grande esforço por uma sociedade conforme às normas da moralidade cristã; lutam por uma legislação contra o divórcio, o aborto, por leis que favoreçam a família e pela justiça em sentido católico. O mau é que, na hora de explicarem sua luta, recorrem sem pensar duas vezes às mais variadas doutrinas e filosofias, conformando-se em batizá-las como "bem entendidas", "autênticas" ou até mesmo "cristãs" como se, assim, restasse tudo claro e resolvido.

Dessa forma, a verdadeira declaração dos direitos humanos coincide com os preceitos do Decálogo. A autêntica dignidade da pessoa não é uma doutrina antropocêntrica, mas a dignidade manifestada pela obra redentora de Nosso Senhor. O humanismo tampouco implica qualquer doutrina má, contanto que seja o humanismo cristão. O laicismo de Estado condenado pelos papas do século XIX se torna bom, contanto que seja um laicismo são e a democracia parlamentar é perfeitamente aceitável como tal, desde que seja uma democracia bem entendida. O resultado de semelhante proceder é uma espécie de guisado feito com restos, indigerível para qualquer mente razoavelmente lógica. 

O antecedente doutrinal de tudo isso parece se embasar em uma espécie de inversão do gnosticismo progressista do tipo que falamos antes. Consiste em crer que toda filosofia e religião está em certa medida contida na religião católica que, dessa maneira, é concebida como a gnosis na qual deságuam, ainda que sem saberem, todos os outros movimentos espirituais. Toda teoria - parecem pensar - tem como em germe uma vocação à verdade plenamente possuída pela Igreja Católica e, em certa medida, sempre contém algo de sua verdade. Ainda que isso, feitas muitíssimas precisões, possa ter algo de certo, de modo algum autoriza a substituir a fundamentação católica da atuação política por máximas de filosofias heterodoxas, por mais eficaz que as creiamos ou por muito que adicionemos ao familiar rótulo de "bem entendido". E isso por várias razões:

Primeiro, precisamente por razões práticas: se a luta por uma legislação anti-abortista se fundamenta sobre a vida como valor supremo, sobre os direitos da pessoa humana e sua dignidade, ou sobre as declarações de direitos humanos, e não porque assim ordena a lei de Deus, eu quase diria que é melhor ficar em casa, porque a introdução de princípios de origem anticristã é provavelmente um mal muito maior que o bem parcial que se persegue. Com efeito, ao fazer tal coisa, de início tais princípios parecem firmemente estabelecidos como católicos. Mas, como desde esses mesmos princípios se pode conseguir também a licitude do aborto, através dos direitos da mulher, do direito ao próprio corpo ou coisas similares, a conclusão que se queria demonstrar, isto é, a suposta ilicitude do aborto, resta em dúvida. No final das contas, a única coisa que se ganhou com segurança é a introdução de princípios errôneos no seio da doutrina católica, que minam sua claridade e sua capacidade de guiar nossa atuação.

Outra razão é que promover obras boas por amor à vida, por humanismo ou por respeito à pessoa, quer dizer, por motivos humanos e não por amor a Deus, pode ser uma obra boa na ordem natural, mas carece do mérito sobrenatural reservado ao que se faz com caridade ou amor a Deus, o qual supõe a verdadeira fé. "Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria" (1 Cor. 13, 3).

Mas o mais grave do indiferentismo ou ateísmo de Estado, admitido tácita ou explicitamente por esses católicos, é a ofensa que através disso se faz a Deus e, de quebra, as consequências que disso derivam, tal como expunha já Leão XIII (Nobilissima Gallorum gens, n. 3) com frases com as quais termino e que parecem uma maldição lançada há 120 anos contra nossa sociedade, e que não pode deixar de nos estremecer:
"...como não há bem algum que não deva ser atribuído casualmente à bondade divina, todo Estado que disponha a exclusão de Deus da legislação e do governo rechaça, enquanto Dele depende, o auxílio da bondade divina; e, portanto, se faz merecedor da negação de toda proteção celestial. Por essa razão, ainda que esse Estado pareça poderoso em recursos e abundante em bens naturais, leva, sem embargo, em suas mesmas entranhas um gérmen de morte e não pode prometer-se a esperança de uma longa vida."


Non praevalebunt: as agitações na Barca de Pedro e o “tradicionalismo”

"A Tempestade no Mar da Galileia", de Rembrandt Não sou um exímio especialista na Crise da Igreja, não sou teólogo ou filósofo, nã...