quarta-feira, 16 de outubro de 2019

A democracia como religião: a fronteira do mal

Artigo do filósofo tradicionalista espanhol Rafael Gambra para a revista Roma, Nº 89, agosto de 1985. Tradução livre.

A assinatura da Constituição dos Estados Unidos, por Howard Chandler Christy


Foi Aldous Huxley, em sua fábula futurista Um mundo feliz, quem sugeriu que o que chamamos de um axioma - i. e., uma proposição que nos parece evidente por si mesma e que, por isso, a aceitamos - pode ser criada para um indivíduo e para um ambiente determinados mediante a repetição, milhões de vezes, de uma mesma afirmação. Para tal efeito - a gênese artificial de axiomas e de dogmas -, propunha ele a utilização, durante o sonho, de um mecanismo repetitivo que falasse sem interrupção ao nosso subconsciente, capaz de receber e assimilar qualquer mensagem durante horas.

Esse desígnio está, hoje, depois de meio século, muito próximo da realidade, ainda que seja através de técnicas não exatamente iguais, como sublinhou o próprio Huxley em seu Retorno ao mundo feliz.

A realização mais importante neste sentido, através de métodos de saturação mental pelos meios de comunicação de massa, tem sido, na nossa época, o estabelecimento em escala mundial do dogma-axioma da democracia. Dessa noção - em seu sentido individualista e majoritário - conseguiu-se fazer a pedra angular da mentalidade contemporânea. Quer dizer, do que Kendall e Wihelmsenn chamaram a "ortodoxia pública" de nosso tempo. Essa expressão significava, para os mesmos autores, o conjunto de bases conceituais ou de fé em que se assenta toda sociedade histórica, elementos que são, por sua vez, ideias-força para seus membros e pontos de referência para se entender em uma mesma linguagem e concordar, enfim, em alguns axiomas e dogmas que somente os marginalizados ou extravagantes exigiriam que fossem fundamentados.

A consolidação do dogma da democracia e de sua axiomática vem sendo, é claro, obra de muitos anos, mas agora é que se conhece sua vigência universal. Já a fins dos anos 1920, dava-se por certo, na linguagem política espanhola que, depois da ditadura do General Primo de Rivera, era obrigação "retornar à normalidade constitucional (ou democrática)". Hoje se supõe para o mundo todo, desde a Europa mais culta até a selva africana, que só eleições "livres" (com sufrágio universal) podem justificar um governo ortodoxo. Qualquer outro governo receberá o qualificativo de "ditadura" e se apelará a cruzadas contra ele, após denunciá-lo universalmente como violador dos "direitos humanos", e os mesmos constituem a apelação última que, em outro tempo, situava-se no juízo de Deus Uno e Trino. Existem, é claro, determinadas tolerâncias ou concessões em favor da perfeição universal do quadro: o mundo soviético ou sovietizado e múltiplos sultanatos árabes prescindem de toda consulta à "opinião pública" e basta-lhes se autointitularem "populares" ou "democráticos" para gozarem de suficiente imunidade.

Não é preciso recordar que a constelação de princípios que formam a ortodoxia democrática está muito distante da evidência dos axiomas. Mais ainda: penso que chegará um tempo em que os homens se assombrarão de que o governo dos povos - e a educação dos homens em seu seio - tenha estado confiada ao sistema de opinião e maioria. Alguns desses princípios são de cunho epistemológico, que pode ver-se nos seguintes enunciados:

- O poder nasce da Vontade Geral e não reconhece outra origem ou título;
- A Vontade Geral se identifica com a opinião pública num dado momento;
- O voto de todos os cidadãos tem o mesmo valor;
- O conteúdo dessa opinião se expressa nos nomes dos candidatos e dos partidos e nos slogans eleitorais;
- Os partidos e seus meios de comunicação de massa são os artífices dessa opinião.

De onde, como corolário obrigatório: as técnicas de publicidade e de influência subliminar (o condicionamento de reflexos, em suma) será o que governará os povos. 

Sem embargo, esta série de disparates que constituem a "ortodoxia pública" da democracia tem sido admitida inclusive pela Igreja oficial dos nossos dias. Assim, quando em nossa pátria - ou em qualquer outra democracia - sucede que trupes teatrais representam espetáculos sacrílegos ou blasfematórios com subvenção oficial, os prelados, em sua maioria, nada dizem, porque sua intervenção poderia ser interpretada "como uma coação à liberdade de expressão cidadã". E os que protestam não fazem em nome e pela honra de Deus, mas porque "tais espetáculos ofendem a maioria católica do povo espanhol". Falam em nome da Democracia e em sua defesa. 

Assim, também, quando as organizações tituladas católicas protestam contra a laicização do ensino oficial e contra as leis confiscatórias (ou dissuasórias) do ensino privado religioso, não o fazem mais em razão de que a educação num país católico deve ser católica para todos (com as exceções devidas aos declaradamente irreligiosos ou de outras religiões). Limitam-se a defender uns assentos confessionais dentro da grande democracia que formamos ("nossa democracia", ouvi-os dizer); i. e., a defender o direito dos grupos católicos que desejem possuir escolas confessionais. 

Até tal ponto o espírito da democracia liberal penetrou na mentalidade de hoje e em sua "ortodoxia pública" que se declarar "não-democrata" ou contrário à democracia soa aos ouvidos como em outro tempo soou a apostasia expressa ou a blasfêmia. Muitos católicos que recusariam o adjetivo de socialista, ou de divorcista, ou de abortista - e que, inclusive, lutam contra essas ideias - não veem inconveniente algum em se declararem democratas ou liberais, e militar em partidos com tais denominações. 

Porém, uma vez admitida a Vontade Geral como fonte única da lei e do poder - e negada toda outra instância imutável de religião transcendente -, que lógica poderá se opor à socialização dos bens e do ensino, à ruptura do vínculo matrimonial, às práticas abortistas ou à eutanásia, se tais desígnios ou supostos direitos figuram no programa do partido majoritário? A democracia moderna, com seu aspecto equívoco e aceitável é, na realidade, a chave e a porta para todas essas aberrações e as que lhes seguirão. 

No campo dos males, como no dos bens ou valores, existe uma hierarquização que podemos estabelecer apenas recorrendo, por via de negação, às Tábuas da Lei. Assim, podemos ver que a socialização dos bens ou do ensino se opõe ao sétimo mandamento (não furtar) e ataca diretamente a família, instituição de origem divina; o divórcio se opõe a essa mesma instituição e, geralmente, ao nomo mandamento (não desejar a mulher do próximo); o aborto e a eutanásia atentam contra o quinto mandamento (não matar)...

Mas a raiz mesma da democracia moderna se opõe ao primeiro e principal dos mandamentos, aquele ao que se reduzem os demais: "amarás o Senhor, teu Deus, acima de todas as coisas". Propugnar a laicização da sociedade (negar-lhe um fundamento religioso) e derivar a lei apenas da convenção humana equivale a cortar os laços da convivência humana em relação a Deus, a negar a religião (ou a religação do homem com seu Criador). As transgressões daqueles outros mandamentos podem, em certos casos, ser pecados de fraqueza; só a transgressão deste é pecado de apostasia. 

Daí vê-se o martírio aceito sem vacilação pelos primeiros cristãos na Roma imperial. Eles desfrutavam em seu tempo de uma situação de "liberdade religiosa"; quer dizer, não eram condenados por praticar seu culto. Um status parecido ao que outorga a democracia moderna às confissões religiosas, ainda que com fundamento distinto. Os romanos admitiam em seu politeísmo todos os cultos e divindades. Não teriam achado inconveniente em admitir o Deus cristão entre as divindades do Capitólio e autorizar livremente o culto cristão. Mas, com a condição para os cristãos de reconhecer, ao menos tacitamente, o politeísmo (aceitar que seu Deus seja considerado um dentre outros) e de adorar o Imperador como símbolo e garante da religiosidade oficial. E aqueles cristãos, que se mostravam no resto bons cidadãos, preferiam o suplício e as feras do circo ao invés de renegar a unicidade todo-poderosa do verdadeiro Deus.

Situação semelhante é a dos católicos dentro de um país cristão perante a aceitação voluntária da democracia moderna. Com o agravante de que, aqui, o status de liberdade não se apoia em uma distinta concepção da religião, mas numa negação desta, de toda religião, que se passa a considerar como assunto privado ou opinião. Não é mais uma religião falsa, mas um antropocentrismo, ou culto ao Homem. Hoje não há que reconhecer como deus o imperador, mas a Constituição. Certamente que na democracia não se exige de modo tão retumbante esse reconhecimento sob a forma de adoração, e o caso se presta a interpretações ou "arranjos de consciência". Mas, para quem tal aceitação não seja obrigada, nem por meio de fórmulas, senão ato voluntário através da adesão ao sistema ou a um partido, o caso é objetivamente mais grave que para os cristãos de Roma.  

Tais reconhecimentos se opõem, também, às duas primeiras petições que formulamos no Pai-Nosso, a oração que o próprio Cristo nos ensinou: "santificado seja Vosso Nome; venha a nós o Vosso Reino". O democrata liberal as substitui implícita ou explicitamente por "eliminado seja Vosso Nome; venha a nós a secularização, o reino do Homem". E se opõem, enfim, aos dois últimos ensinamentos que Jesus Cristo Nosso Senhor nos deixou em sua vida mortal antes de ser conduzido ao suplício: quando, diante da autoridade civil (Pilatos) e perante a religiosa (Caifás), afirma a Verdade a a autoridade de origem divina.

A democracia liberal se apresenta, assim, sob sua verdadeira luz, como a fronteira do mal: aquela linha de demarcação que, traspassada, situa-nos fora "dos que pertencem à Verdade", i. e., no reino dos que, por aclamação popular, obtiveram a morte de Cristo. O reino em que não se fala mais de verdade nem de autoridade, senão de opinião e de povo. Reino no qual os crentes em Deus só pedirão uns assentos parlamentares no seio do pluralismo laicista para viver tranquilamente sua fé em meio a uma apostasia imanente. 

Mas acontece que a negação de Deus acarreta como corolário inevitável a negação do homem: O que poderá se construir na cidade humana sobre a areia movediça da opinião e do sufrágio? O que deixará como herança a sociedade democrática na qual o homem só serve a si mesmo? Eliminado pela raiz o Fim Supremo e a religação com Ele, quanto durarão os fins subordinados e uma vida que não conduza ao marasmo do tédio e dos vícios acumulados? É já a sociedade que temos diante de nós, eminentemente nos países mais desenvolvidos economicamente: a sociedade nas quais sobram os meios de vida, mas falta uma razão para viver. 

***

"Os povos, as civilizações - tem-se dito - são como estranhos navios que fundam suas âncoras no Céu, na Eternidade". A democracia liberal está consumando a ruína da nossa civilização e, por contágio, de toda outra civilização. Porque a civilização cristã (ou clássico-cristã) não está sendo substituída por outra, mas por uma anti-civilização ou uma dissociação que, se sobrevive, é à custa dos restos difusos daquela cultura originária, daquela - hoje combatidíssima - ordem das almas. 

Evidencia-se, assim, que nenhuma concepção da ordem política pode resultar mais letal ou aniquiladora para a comunidade humana que a democracia moderna ou "sociedade aberta" (open society). Postular uma sociedade sem fé e sem princípios, sem normas estáveis, carente de pontos de referência, dependente apenas da opinião pública e da utilidade da maioria é como ab-rogar a disciplina em um navio, esquecer seu rumo e a ordem das estrelas, abandoná-lo à deriva. Para onde se dirigirá tal navio? Em qual linguagem sua tripulação se entenderá? Como se contornarão as tempestades? O que justificará sua mesma unidade e existência?

Quando, por exemplo, o Presidente da República francesa - ou de qualquer outra democracia moderna - apela ao heroísmo da Legião para resolver um conflito armado grave, em nome de quê o faz? Com que direito? Se nada existe fora o interesse dos cidadãos e da opinião majoritária, como exigir a homens jovens que entreguem tudo o que possuem, sua vida? Só por um recurso imoral a normas, crenças e valores permanentes, que a própria democracia nega, poderá recorrer a tais meios de coerção e de sobrevivência. 

Caberia uma objeção em nome da universalidade da razão. Se toda sociedade histórica, para sua simples existência e resistência, precisa ter seu fundamento em uma fé e em um fervor coletivos, em noções do que é sagrado e reto, do que é o dever e o sentido do sacrifício, suporá isso que cada civilização é impenetrável intelectual e emocionalmente para quem não toma parte de sua tradição ou de sua herança? Terá que se aceitar o ditado de Spengler, de Toynbee e de determinados estruturalistas, para os quais as culturas são sistemas fechados, cujo sentido é imanente a um sistema intransferível de pontos de referência?

Nada autoriza tal conclusão. A razão é uma instância capaz de penetrar tudo o que é puramente humano e, inclusive, dentro de certos limites, a ordem mesmo do ser. A civilização ocidental de origem cristã - nossa civilização histórica - tem sido encarregada de demonstrar na prática essa capacidade da razão. Sua fé - nossa fé -  foi pregada em todos os cantos da terra e criou raízes, em maior ou menor grau, nas civilizações mais díspares. Sua ciência, sua técnica, suas categorias mentais e suas imagens de comportamento - basicamente racionais, anti-míticas - se estenderam a todo o mundo, penetrando-o em boa medida. Seja como cultura superposta, seja como enxerto cultural, pode-se dizer hoje que uma só cultura - a ocidental - é a cultura comum do planeta. 

Porém, e paradoxalmente, essa planetarização de uma cultura racional só se pôde realizar através de uma civilização determinada - a ocidental -, civilização que, como todas as outras, nasceu de uma fé - de uma ancoragem na eternidade -, e se edificou sobre normas e valores morais. E isso porque, em sentença filosófica, operari sequitur esse, o obrar segue o ser: não se expande uma civilização sem antes ser, existir. E, se só nesse caso foi possível o efeito de uma difusão de certo modo universal, foi, precisamente, porque tal civilização se apoiou, originariamente, na religião verdadeira.

Na renúncia a essas origens se encontra a raiz última da crise em que se debate a sociedade ocidental. Crise não circunstancial, mas degenerativa, estendida em forma de rebelião generalizada e, por via de contágio, a outras civilizações, incluindo à própria natureza, invadida e contaminada. A expressão dessa renúncia a toda ancoragem sobrenatural é a democracia liberal; mais que renúncia, negação de toda transcendência, edificação da sociedade do Homem e para o homem. 

Porque a chamada "sociedade aberta" - a dos Direitos Humanos - ignora o primeiro e principal dos direitos do homem, que é o de buscar a verdade e servi-la, o de fundamentar nela sua vida e o duradouro rumo de sua viagem terrena. 

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