domingo, 15 de março de 2020

O sofrimento, a Cruz e o homem moderno


A magnífica escultura do sevilhano Manuel Martín Nieto, Cristo de la Misericordia

O homem não se vê mais como um peregrino caminhando por uma estrada estreita até o momento de se encontrar com Deus através da morte do corpo, e sim vive como um pequeno rei que busca o conforto material e a consolação dos seus semelhantes, satisfazendo todas as suas vontades em diferentes graus. Mais: nunca antes na história humana o tempo importou tanto. Vivemos no imediatismo, afirmação facilmente confirmada a cada rápida visualizada nas redes sociais, especialmente naquelas que se baseiam quase totalmente na troca de mensagens.

Ocorre que, neste mundo, que deveria ser de prazer, de alegria e de realização pessoal para a mentalidade contemporânea, eivada das mais insanas ideologias, claro é que há frustrações e amarguras, desde tirar nota vermelha numa prova da faculdade até perder um ente querido ou adquirir uma doença grave e incurável. Também existe a demora: há coisas que só o tempo, ou melhor, a Providência através do tempo, cura e soluciona. 

Ora, se o sentido da vida é a felicidade no mundo, qualquer dor e tristeza física ou mental passa a não se encaixar no cenário, uma vez que a vida terrena é aquela que importa; não há outra, afinal. Devemos ser felizes aqui; se não somos, algo está errado. E, como assim não podemos solucionar problemas e ter o que queremos agora? Ficamos perplexos diante da impotência da frágil e decaída natureza humana.

As ideologias que retiraram Cristo e Sua Paixão dos locais públicos, chegando mesmo a invadir o imaginário popular e chamá-lO de mito, de uma lenda antiga e desnecessária ao homem, pretenderam fazer do homem um deus. Quiseram que ele fosse feliz sozinho, dependendo apenas de seus iguais - quando esses não são mortos no ventre materno ou no leito de um hospital -, e não Daquele que o criou e o sustenta dia após dia. Vão engano. Mesmo com a disponibilidade imensa e imediata de toda a espécie de divertimentos sensíveis, lícitos e ilícitos, jamais se viu povo tão infeliz.

Quando não se olha mais para a Cruz, quando não se pensa mais nas Coisas do Alto para as quais o homem foi criado, perde-se toda a dimensão e o sentido do sofrimento. Não à toa temos a geração que mais cria e compartilha páginas de "pensamentos positivos" e "boas vibrações", mas também aquela na qual as pessoas mais tiram suas próprias vidas, quando chegam ao limite imposto por tantas moléstias psicológicas/psiquiátricas que se espalham tal qual sementes ao vento na louca atualidade.

Isso porque a Cruz mostra um Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem, sem qualquer mancha e que, na nossa mentalidade, não deveria ter sofrido a terrível morte que lhe caiu sobre os ombros. Era sangue inocente, como o próprio Judas reconheceu. Ora, eu, pecador, repleto de culpas e das mais graves, dono das mais miseráveis falhas, deveria estar em melhor condição que o Cordeiro Imaculado? Não seria totalmente injusto pensar em tal situação, uma vez que o pecado é uma dívida infinita, a ponto de exigir a reparação do próprio Deus Encarnado?

Para isso ocorreu a Santa Paixão. Cristo satisfez a infinita reparação devida pelo homem por causa do pecado através de Suas Chagas: Suas costas mutiladas pelo flagelo com ganchos e pontas de chumbo, Suas mãos e pés transpassados por grossos cravos, Sua cabeça penetrada por longos espinhos, Sua face coberta de hematomas e cusparadas. E, detalhe: voluntariamente. Que loucura para o mundo moderno procurar o sacrifício e o sofrimento em prol dos amigos... E dos inimigos! 

Quanto às perspectivas de sucesso que muitos invejam, um ligeiro olhar para a vida do Salvador mostra-nos que, por vezes, o sucesso terreno não equivale ao sucesso sobrenatural e até lhe é contrário: o nascimento numa pobre gruta em Belém, no frio da noite, sem lugar nas estalagens; a fuga para o Egito, ainda como pequeno menino; a vida oculta, cheia de trabalhos e auxílios a São José e a Maria Imaculada; o início da vida pública, conhecido apenas como "filho do carpinteiro"; o auge de tal curta e prodigiosa carreira, odiado pelos fariseus e doutores da Lei; a traição de um discípulo amado, o abandono dos principais apóstolos à exceção de São João, a negação do primeiro Vigário, São Pedro; morto na Cruz, como um maldito, entre dois ladrões. Quando da Ressurreição, nenhuma testemunha presente naquele incrível momento. 

O Fracassado aos olhos do mundo, aquele Sofredor tão desprezado, resgatou os homens e dispôs aos mesmos infinitos tesouros dispensados, daquele momento em diante até o final dos tempos, pela Santa Igreja. Ela, em suas orações do maior ato público de adoração - a Santa Missa, no Ofertório -, reconhece que tal prodígio foi ainda maior que a Criação: Deus, qui humanæ substantiæ dignitatem mirabiliter condidisti, et mirabilius reformasti...

O sofrimento tem um sentido absolutamente salutar: nos aproximar de Nosso Senhor Jesus Cristo, satisfazendo nossas próprias faltas e fazendo-nos acumular tesouros no Céu se carregarmos tal cruz com verdadeiro amor. Como o Cireneu, dessa forma auxiliaremos outros a carregarem suas cruzes, pois cada um tem a sua própria. É a chave da salvação, a ponte que nos transporta à Verdadeira Felicidade, aquela que será eterna e imensamente maior que todas as pequenas e passageiras alegrias deste século. E, se é maior que todas as alegrias, quanto maior é que todas as angústias e todos os desamparos?

Quem quer que esteja triste, envolto na tribulação, sob as espessas nuvens da dor e do fracasso, basta olhar para o Senhor no Santo Madeiro: "Meu filho, isso foi por ti, para que te abrissem as portas do Céu. Levai tua cruz, infinitamente mais leve que a Minha, com paciência e a consolação de todas as graças que a ti disponho, pois terás um lugar junto a Mim no Paraíso se assim o fizeres". 

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