quarta-feira, 17 de abril de 2019

"Amigo, a que vieste?"


Breve reflexão sobre a Divina Misericórdia e o sacramento da penitência com base nos ocorridos da Quinta-Feira Santa

Ilustração de Gustave Doré 

Naquela fria e enevoada noite no Getsémani, o Horto das Oliveiras, Nosso Senhor Jesus Cristo padecia de mortal agonia ao antever os sofrimentos que cairiam sobre Sua Santíssima Carne em algumas poucas horas para a Redenção dos homens. Uma vez que tal sofrimento já estava presente desde o momento de Sua Encarnação na Imaculada e Sempre Virgem Maria, podemos conjecturar que foi aumentando exponencialmente até chegar a fatídica noite de Quinta-Feira e a madrugada da Sexta-Feira Santa, após Jesus ter instituído a Eucaristia e o sacramento da Ordem, reunido com Seus apóstolos na Santa Ceia. 

Se nós ficamos ansiosos e sofremos por antecipação em relação às menores situações da vida, o que dizer sobre a incomparável agonia de Cristo naquele instante, quando sabia perfeitamente quando e como cada um dos socos e bofetadas, cada um dos açoites e suas cruéis pontas de ferro, como cada um dos espinhos, dos cravos e cada uma das farpas da Cruz atingiriam Seu Santo Corpo? O próprio Senhor nos revela: "E, tomando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes, então: 'Minha alma está triste até a morte. Ficai aqui e vigiai comigo'." (Mt. 26, 37-38).

Essa tristeza mortal certamente era ocasionada, para além do conhecimento de todos os sofrimentos físicos, pelo fato de amar infinitamente cada um daqueles que O maltratariam. Como disse São Francisco de Assis, "o Amor não é amado". Se dói para um pai ser rejeitado, ultrajado e ofendido pelo filho, quanto maior é a dor de Cristo, cujos laços com cada um dos homens são incomensuravelmente mais estreitos. E Jesus não apenas seria rejeitado por aqueles homens distantes, os pagãos romanos e os pérfidos judeus inconversos, mas por Seus discípulos mais próximos: São Pedro O negaria três vezes; quase todos, à exceção de São João, fugiriam e desapareceriam covardemente; Judas O trairia por míseras 30 moedas de prata. 

Vejamos especificamente o caso deste último, por ora. Nosso Senhor tinha pleno conhecimento de todas as dores que padeceria, tanto físicas quanto psíquicas; e essas dores seriam ocasionadas pela traição de Judas, e engana-se aquele que crê que Cristo não perscrutava o coração do traidor. Sabia exatamente quem o trairia, como, onde e quando isto se daria. 

Qualquer um de nós, quando nos deparamos com um conhecido que nos maldiz ocultamente, que não nos aprecia e até mesmo nos maltrata, rapidamente providenciamos a exclusão de tal pessoa de nossos círculos sociais. O menor contato possível com o adversário é um alívio, a melhor forma de manter a tão almejada paz. 

Jesus não. Judas esteve em Sua Presença até o princípio da Santa Paixão. Nosso Senhor jamais o expulsou e teve sempre presente todas as amarguras que esse discípulo Lhe traria. Entretanto, teve paciência: manteve-se próximo do pecador até que esse Lhe rejeitasse por completo e traísse o sangue inocente. 

Cristo faz o mesmo com cada um de nós, trata-nos com paciência e compaixão, possibilitando a nós todas as chances de nos agarrarmos à Graça de Deus e salvarmos nossa alma, o bem mais precioso do homem, ainda que lamentavelmente esquecido. E, se Nosso Senhor desaparece do nosso coração, não é porque deixou de nos amar, mas porquê nós O amamos pouco e O crucificamos novamente por inúmeras faltas.

Mas a Sagrada Escritura nos lembra de que há duas posturas perante a miséria do pecado: a primeira postura retratada é a de São Pedro, a segunda é a postura de Judas. Comecemos analisando a segunda, uma vez que conecta-se perfeitamente aos parágrafos anteriores. 

Sabemos que Deus não quer "a morte do ímpio, mas que o ímpio se converta de seu caminho, e tenha a vida" (Ez. 33, 11), que "a maldade do ímpio não o prejudicará, desde o dia em que se converta de sua impiedade” (Ez. 33, 12), e que "se o ímpio fizer penitência de todos os pecados cometidos; se guardar todos os Mandamentos [de Deus]; se proceder com equidade e justiça: é certo que terá a vida" (Ez. 18, 21). Haveria, portanto, perdão para o pecado de Judas, ainda que fosse o maior de todos.

Como o ímpio deve buscar a Deus? Também nos mostra a Sagrada Escritura: "Quando buscares o Senhor teu Deus, encontrá-lO-ás, contanto que O busques de todo o teu coração, e com toda a angústia da tua alma" (Deut. 4, 29) e "Buscar-Me-eis, e haveis de achar-Me, se Me procurardes de todo o vosso coração. Então, deixar-Me-ei encontrar por vós, diz o Senhor" (Jer. 29, 13-14). É certo que Judas ficou angustiado pelo pecado que havia cometido, "tomado de remorsos" (Mt. 27, 3).

Ora, se havia perdão para o pecado de Judas e se o mesmo ficou repleto de remorso, por quê não obteve perdão? Pois não buscou a Deus de todo o coração, como nos ensina as passagens supracitadas, nem confiou na Misericórdia Divina, desesperando-se da salvação e tirando a própria vida. 

Eis a primeira postura perante o pecado: a postura de Judas, verdadeiramente demoníaca por não confiar no Bom Deus que enviou Seu Próprio Filho para nos redimir através de dolorosíssima Paixão, por total liberalidade e misericórdia, uma vez que não é Ele que precisa do homem, mas o contrário. Passemos agora à segunda postura perante o pecado: a postura de São Pedro.

De comportamento enérgico, São Pedro disse com firmeza que jamais negaria Cristo, e que se fosse necessário morreria com Ele. Entretanto, quando perguntado pelos criados da casa do Sumo Sacerdote se conhecia Nosso Senhor e se andara em Sua companhia, negou três vezes. Pecado sem dúvida enorme. Jesus já advertira diversas vezes o que Lhe sucederia, inclusive imediatamente antes de se encaminhar com os apóstolos para o Jardim das Oliveiras: "Disse-lhes então Jesus: 'Esta noite serei para todos vós uma ocasião de queda; porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho serão dispersadas [Zc. 13, 7]. Mas, depois da minha Ressurreição, eu vos precederei na Galileia'." (Mt. 26, 31-32). O Príncipe dos Apóstolos dissera que jamais O negaria e, vendo-O completamente desamparado, cuspido, esbofeteado e ofendido de todas as formas, abandonou-O.

Porém, eis agora a essencial diferença entre Judas e São Pedro: "Pedro recordou-se do que Jesus lhe dissera: 'Antes que o galo cante, tu me negarás três vezes'. E saindo, chorou amargamente" (Mt. 26, 75). Ele fez como o salmista: "Estou fatigado de tanto gemer. Todas as noites, lavo meu catre com lágrimas" (Sl. 6, 7), e sabia que o resultado disto seria o seguinte: "O Senhor escutou o clamor do meu pranto" (Sl. 6, 9). Como lembrou-se da palavra que o Senhor lhe dirigira pessoalmente, lembrou-se do que dizem as Escrituras, a mesma palavra de Deus: "Convertei-vos a Mim, de todo o vosso coração, com jejuns, com lágrimas, com lamentos. E rasgai vossos corações" (Jl. 2, 12).

São Pedro teve uma contrição perfeita, confiando plenamente na Misericórdia de Deus, a ponto de dar a sua vida por Cristo posteriormente. O apóstolo covarde tornou-se corajoso, crucificando seus vícios e seus temores humanos junto a Nosso Senhor e confiando plenamente nEle. 

Nessa Semana Santa, façamos como São Pedro, confiando integralmente na Bondade Divina. Como São Paulo, perguntemos a nós mesmos: "Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas que por todos nós O entregou, como não nos dará também com Ele todas as coisas?" (Rom. 8, 33). Nada pode nos separar do Amor de Deus, apenas o pecado. E para o pecado há perdão, não sete vezes, mas setenta vezes sete (Mt. 18, 22). Com a confiança de que Deus é "o remunerador daqueles que O procuram" (Heb. 11, 6), procuremos um sacerdote e realizemos uma boa confissão, para que recuperemos com toda a força a saúde da alma.

Com total certeza na vitória de Cristo sobre a morte na Ressurreição, também esperemos a Vitória, desde que tenhamos um firme propósito de emenda e façamos o que a Santa Igreja nos pede. "Se morrermos com Ele, com Ele também viveremos. Se perseverarmos no sofrimento, havemos também de reinar com Ele" (2 Tim. 2, 11).

Cristo nos espera ansiosamente, como esperava Judas no Getsémani. Nosso Senhor nos dirigirá as mesmas palavras que dirigiu ao traidor: "Amigo, a que vieste?" (Mt. 26, 50). Que nossa resposta seja diferente daquela de Judas, desta forma: "Senhor, não vim trai-lO, não vim para entregar o Sangue Inocente, mas para entregar-me inteiramente a Vós. Sois meu amigo, mais verdadeiro e mais fiel que todas as amizades terrenas, e em Vossa Presença quero estar por toda a Eternidade. Pela Vossa Misericórdia, aceitai novamente este filho pródigo que chora amargamente, da mesma forma que São Pedro uma vez chorou e recebeu o perdão. Assim como ele lembrou-se do clamor do salmista, também eu digo: 'Não desprezareis, ó Deus, um coração contrito e humilhado' (Sl. 50, 19)".

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Notre-Dame: as chamas tardias da Revolução

O incêndio que impactou o mundo na Semana Santa possui uma íntima relação  simbólica com a História da França e da Cristandade



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O mundo assistiu, pasmo e incrédulo, ao incêndio que acometeu hoje, em plena Segunda-Feira Santa, a belíssima catedral de Notre-Dame de Paris, no coração da França; o símbolo máximo da Cristandade, construído naquela terra que fora outrora a Filha Primogênita da Santa Igreja Católica desde o batismo de Clóvis, no longínquo século V, primeiro rei cristão dos francos e terror dos bárbaros seguidores do arianismo. 

Tal data marcou para sempre o destino da Igreja e da França. Enquanto essa última honrasse filialmente aquela primeira, seria a joia mais brilhante da civilização cristã: território de inúmeros e imensos mosteiros como Cluny; de catedrais incomparáveis como a própria Notre-Dame e Chartres; de santos magníficos como Santa Joana d'Arc e São Luís de Montfort; do esplendor máximo da monarquia e da cavalaria cristã com São Luís IX.

Faz-se necessário recordar um trecho da carta que o grande Bispo de Reims, São Remígio, enviou para Clóvis quando de sua ascensão ao trono, em 481 d. C.:
"Vela para que nunca te abandone o juízo de Deus, a fim de que, por teus méritos, logres conservar esse posto que conquistaste por tua indústria e nobreza, porque, como diz o vulgo, os atos do homem se provam pelo seu fim. Rodeia-te de conselheiros que honrem teu discernimento. Sê prudente, casto e moderado; honra os bispos e atende seus conselhos, pois se vives em harmonia com eles, darás bem-estar ao país. Consola os aflitos, protege as viúvas, alimenta os órfãos, faze com que todo mundo te ame e te tema. De teus lábios saia a voz da justiça, deixa aberta a todo mundo a porta de tua presença. Joga com os jovens, posto que és jovem, mas aconselha-te com os anciãos. E se queres reinar, mostra-te digno disso."
O santo bispo dizia ao jovem rei tudo o que ele deveria fazer para que cumprisse bem seu dever: ordenar tudo a Deus, o bem temporal servindo ao bem espiritual, a espada terrena submissa à espada espiritual através de uma conduta prudente, casta e moderada, respeitando os direitos e os deveres da Igreja. Enfim, realizando aquilo que Leão XIII escreveu de maneira brilhante na encíclica Immortale Dei: a filosofia do Evangelho governando a nação. 

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O Batismo de Clóvis, por François-Louis Dejuinne (1786–1844)

A França gozou da verdadeira paz que apenas o Senhor de todas as nações e povos pode conceder. Floriu como nunca no reinado de São Luís IX, monarca que cumpriu magnificamente, no áureo século XIII, o que o Bispo de Reims aconselhara ao seu antepassado. Além de fundar hospitais, escolas, lutar em duas cruzadas, agir com extrema justiça (muitas vezes exercida pessoalmente nos bosques de Vincennes) e fazer ecoar imensa caridade para com os doentes, as viúvas, os órfãos, os pobres e os inimigos da França, escreveu ainda ao filho Filipe: 
"(...) Mantenhas os bons costumes do teu reino e expulses os maus costumes. (..) Honres e ames todas as pessoas da Santa Igreja, e tenhas cuidado para que nenhuma violência seja feita a elas, e que as doações e esmolas que os teus predecessores deram a elas não sejam retiradas ou diminuídas. (...) Ame-as e as honre para que possam fazer em paz o serviço de Nosso Senhor. (...) Eu te aconselho sempre a ser dedicado à Igreja de Roma, e ao Soberano Pontífice, nosso pai, e prestar a ele a reverência e a honra que tu deves ao seu pai espiritual."
Notemos mais uma vez o que diz o santo rei. Se o sucessor quisesse governar de maneira estável e profícua, deveria manter os bons e expulsar os maus costumes, inclusive os próprios, daí a primeira parte da carta se referir aos deveres diretos para com Deus, evitando o pecado mortal e ouvindo atentamente a Santa Missa. Só é possível manter os bons costumes do reino através de uma Igreja forte, auxiliada pelo Estado em sua tarefa imprescindível de salvar as almas, aplicando os méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo pelos Sacramentos. Como o corpo não exerce suas funções desconectado da cabeça, assim o rei deve obedecer ao Papa, representante de Cristo na Terra e cabeça da Igreja. 

Essa era a França católica até o século XIV, quando Filipe IV o Belo, neto do santo monarca, passou a concentrar o poder em suas mãos em detrimento da autoridade da Igreja, expulsando o clero dos assuntos governamentais. Bonifácio VIII, papa da famosa bula Unam Sanctam, chegou a ser esbofeteado por Sciarra Colonna, partidário do rei, e preso. Uma inversão radical na História da França tem seu germe na ocasião: a espada temporal insubordinando-se contra a espada espiritual e a Igreja rendida a um Estado sedento pelo poder. Que diferença encontramos entre Filipe IV e São Luís! Mas a diferença entre Estado e Igreja seria expandida até chegar à semelhança de uma abismo. 

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Sciarra Colonna esbofeteando Bonifácio VIII

Passaram-se os séculos e o Estado moderno se formou. Pouco a pouco, as camadas intermediárias da sociedade, os chamados "Estados", perderam a importante posição que ocupavam na monarquia temperada medieval. A nobreza começou a ser figurativa. O auge da dissolução foi a Revolução de 1789, de cunho anticristão, verdadeiramente satânica, como a chama Joseph de Maistre. As corporações de ofício foram abolidas; à nobreza restou ser completamente banalizada e ridicularizada com Napoleão.

Em seu período mais aterrorizante, a Revolução massacrou os clérigos e religiosos que não se submeteram à vergonhosa e lamentável Constituição Civil do Clero, cerceante dos direitos que Deus legou à Sua Igreja. Os camponeses e nobres da Vendeia, num incrivelmente virtuoso levante contrarrevolucionário da moribunda França, foram trucidados às centenas de milhares. Nas palavras do general republicano François-Joseph Westermann, em 23 de dezembro de 1793:
"Não há mais Vendeia. Ela pereceu, com suas mulheres e crianças, sob a nossa espada da liberdade. Seguindo suas ordens, eu esmaguei as crianças sob os cascos dos nossos cavalos, e massacrei as mulheres - elas não darão mais criança alguma para esses rebeldes. Não tomei um só prisioneiro."
As maiores barbaridades, blasfêmias e irracionalidades foram cometidas pelos revolucionários: multidões enviadas para a guilhotina em meses; instalaram-se cultos "laicos", de viés naturalista e racionalista; zombava-se de tudo que é santo, destruíram-se as igrejas, a catedral de Notre-Dame tornou-se um armazém de alimentos e suas obras foram saqueadas; profanaram-se as tumbas dos reis; a lista é extensa. Depois, a Concordata de Napoleão forneceu às ideias da Revolução o triunfo sob uma aparente tinta conservadora. A Igreja passou a depender de benefícios do Estado, como se não fosse Deus quem instituísse toda autoridade legítima (Rm. 13, 1). O imperador estrategista, tomando a coroa das mãos do papa Pio VII, selou definitivamente aquela desordem iniciada por Filipe IV: o Estado acima da Igreja, a espada temporal rebelada contra a espada espiritual. 

O resultado da Revolução na França é uma sociedade contrária à autoridade divina, que nega sua herança católica e monárquica, que destrona Nosso Senhor Jesus Cristo e despedaça os direitos de Deus para gritar "Vive la République" e louvar os pretensos direitos do homem. Que bela e inteligente noção de homem, essa dos revolucionários: ser contingente que recusa Deus Criador, mantendo-se distante da Perfeição, limitado em todos os sentidos de sua existência e vivendo na escravidão do pecado, clamando que conquistou a liberdade.

Os afogamentos de Nantes: inúmeros católicos, em sua maioria padres, mulheres e crianças, foram despidos de suas roupas, amarrados conjuntamente e afundados no rio. Pintura de autoria anônima.

Como se não bastasse a apostasia ocasionada pelo liberalismo, ainda há o problema do grande fluxo de muçulmanos que chegam à França e lá constituem famílias numerosas, papel que foi completamente esquecido pelo homem e pela mulher ocidentais, que preferem possuir um animal de estimação e viajar pelo mundo, vivendo confortavelmente e sem quaisquer responsabilidades além da satisfação do próprio ego, ao invés de gerar uma prole herdeira da espiritualidade e cultura cristã que lhes foi legada por grandes santos, ápices do heroísmo na História.

A destruição de igrejas na França não é novidade, nem algo remoto cuja poeira dos séculos encobriu. A Igreja de Saint-Sulpice, na capital do país, sofreu com o poder das chamas recentemente. Apenas em março passado uma dúzia de igrejas foram atacadas. Há que se considerar também as igrejas que foram demolidas ou estão sob o risco constante de demolição por "gerarem muitos gastos ao Estado francês". Culpa, em grande parte, do arrefecimento na Fé: apenas 5% dos católicos franceses vão à Missa; isso não é nem 2% da população no total. Não pensemos, porém, que tal enfraquecimento tem sua origem em fatores externos; encontra suas raízes no modernismo, triunfante a partir do Concílio Vaticano II, chamado de "a Revolução de 1789 na Igreja" pelo Cardeal Suenens. Tal triunfo não será, contudo, duradouro: as portas do inferno jamais prevalecerão contra a Igreja, como prometeu Nosso Senhor mesmo (Mt. 16, 18).

A ruína de Notre-Dame pelo fogo é o símbolo visível do que ocorre no espírito da nação francesa e na Cristandade em geral há muito tempo, consumido pelo fogo satânico do hedonismo, do consumismo, das ideologias perversas que ecoam o grito perverso de Lúcifer, "Non serviam". Toda sociedade que recusa Cristo como rei terá Satanás como governante: "Quem não está comigo está contra Mim; e quem não ajunta comigo, dispersa" (Mt. 12, 30). Distantes do Salvador e legítimo Rei das Nações, resta aos povos observar passivamente o que ainda sobrou no mundo de belo, bom e verdadeiro ruindo, transformando-se em cinzas, enquanto anestesiam-se com os prazeres terrenos, esquecendo a Eternidade. 

Se a França, a Europa e a civilização católica como um todo irão ressurgir, isso não temos como prever; cabe somente à Providência e seus desígnios ocultos. Mas não nos custa repetir a estrofe da canção Le Seigneur appelle ses militants:
Mais de partout les ennemis nous agressent,
Et ils complotent pour que France disparaisse.
Nous voulons ce que Dieu veut pour la France:
Un Etat juste, digne et chrétien.
Mas de todos os lugares os inimigos nos atacam,
E eles estão conspirando para que a França desapareça.
Queremos o que Deus quer para a França:
Um Estado justo, digno e cristão.
Que o incêndio de tamanha joia da Cristandade acorde o povo francês e todos os outros, para que se submetam ao Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo por intermédio da Santíssima Virgem Maria, a quem a catedral é dedicada, rejeitando a apostasia liberal e o secularismo que envenenaram tanto as sociedades como as almas individualmente consideradas, e isso mesmo onde a parcela populacional dos católicos ainda é maioria.  

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Civilização latina ou judaico-cristã?

Artigo escrito pelo excelente historiador argentino, Rúben Calderón Bouchet, na Revista Gladius, ano 1, nº 1 (1984)


Rúben Calderón Bouchet (1918-2012)


Por quê latina?

Tornou-se moda entre os cristãos, ademais insuspeitáveis, referir-se à nossa religião com a denominação de judaico-cristã. Como em geral o uso de tais locuções tem o caráter de um slogan, pareceu-me muito conveniente fazer alguns apontamentos que lancem um pouco de luz no terreno, muito confuso, onde aparecem os termos religião, civilização, judaísmo, latinidade e cristianismo.

Foi um sociólogo polonês, Félix Komeczny, o primeiro a propor o adjetivo latina para denotar, de um modo mais preciso, o verdadeiro caráter da nossa civilização. Opunha-se à designação demasiado topográfica de Ocidente por muitas razões: A primeira de todas era porque tal término caracterizava somente um grupo das nações que pertenceram a essa civilização mas que, indubitavelmente, não foram as únicas. Ficavam excluídos dela povos como Polônia, Hungria, Romênia, etc., não menos comprometidos que os outros na história comum e, em muitos momentos dela, denodados defensores, até o oriente, do patrimônio cultural e religioso que constitui o fundamento da civilização latina. 

Ademais, uma noção puramente toponímica não é denotativa o bastante para prevalecer sobre outras, muito mais aptas para marcar o notável viés espiritual. Poderia se chamar simplesmente cristã, mas como de fato Bizâncio e sua herdeira, Rússia, também são cristãos, o valor demonstrativo do epíteto perderia sua força. Por outro lado, o que caracterizou o desenvolvimento de nossa civilização a todo momento foi a influência de Roma e do latim como veículo imprescindível na formação da nossa inteligência.

O idioma latino, cunhado com justeza nas exigências da expressão jurídica, tem o privilégio de se adequar com precisão ao intercâmbio das ideias mais universais. É, provavelmente, a melhor língua feita para dizer tudo aquilo que os homens necessitam dizer quando se tratam de assuntos de interesse geral. Léxico de juristas, se converteu facilmente em veículo idôneo da filosofia grega e de tudo o que havia de radicalmente essencial nos helênicos. Ao ser expressado em fórmulas latinas, o pensamento grego ganhou em concisão e segurança denotativa o que perdeu, talvez, em riqueza expressiva. 

Língua douta como o grego e cheia de inspiração numinosa como o hebraico, teve a vantagem de estar mais desligada de seus compromissos vernáculos e de haver sofrido, na prática de um direito quase ecumênico, essa purificação semântica que permite dizer o que todas as inteligências podem entender, sem os meio-tons ou os equívocos obscuros de línguas demasiadamente ligadas aos usos e aos costumes de um determinado povo.

A Igreja Católica a adotou como língua de sua liturgia e de sua teologia universal e terminou preferindo-a ao grego, não tanto por uma razão puramente política, como pelas peculiaridades específicas do seu gênio linguístico. O grego, por ser mais rico e matizado que o latim em suas expressões, tem sutilezas idiomáticas que dão pé a muitos equívocos e, como consequência, a discussões intermináveis sobre a verdadeira acepção de uma palavra. O latim, ainda que não evite totalmente essa possibilidade, trata de evitá-la. Está na sua índole o uso das definições irrevogáveis que parecem escritas para desafiar as injúrias do tempo. Nenhuma tradução da Bíblia tem, como aquela da Vulgata, a firmeza na versão do Magistério Eclesiástico. Todos os avanços filológicos de que se jacta nossa época, em seguida às famosas traduções de Erasmo, não fizeram mais que debilitar a exegese tradicional sem nenhum benefício para a fé.

A Igreja, na medida em que rompeu sua conexão original com a Sinagoga, adaptou seu magistério às exigências da civilização greco-latina e se separou de tudo aquilo que, na tradição israelita, pudesse ter de temperamentalmente hebraico.

Em primeiro lugar, dessa sacralização que receberam todas as atividades da civilização no mundo judeu e, em segundo lugar, das minuciosas prescrições do seu esmagador legalismo. É muito lógico supor que essa transferência de civilizações não se fez sem sobressaltos, nem retrocessos. As comunidades que posteriormente foram chamadas "judaico-cristãs" eram, no alvorecer do cristianismo, muito numerosas e gozavam de um grande prestígio religioso para que sua presença não se fizesse sentir com todo o peso de um judaísmo vingativo: exaltação de um messianismo triunfal, espera vingativa do Dia da Ira e um certo gosto catastrófico pela desaparição de Roma.

Não obstante a persistência dessa tradição, a atitude de Pedro e de Paulo ao tomar Roma como centro do seu apostolado foi, desde o começo, favorável a um entendimento profundo com as expressões mais notáveis da civilização helênico-romana. 

Paulo não perdeu nunca a oportunidade de fazer valer sua condição de cidadão romano para defender sua liberdade contra a ameaça dos seus antigos companheiros soldados. Os seguidores de Pedro não apenas oraram pela prosperidade do Império, como também começaram a levar a sério a possibilidade de converter o próprio imperador ao cristianismo. Nada digo sobre as primeiras expressões de arte cristã, pois todo mundo sabe que, embora nada originais, elas tomaram por razão o fornecido pela tradição estética da Grécia e de Roma. Basta ler o prólogo do Evangelho de São João para compreender que o Apóstolo do Verbo tentou uma interpretação teológica de Cristo que emprestava do helenismo uma de suas ideias mais fundamentais, a do Logos, e a introduzia com audácia singular para designar a posição de Cristo nas processões intradivinas. 

Política, arte, ciência, economia e língua vinham agora do mundo gentio greco-latino. De Israel se conservava a Escritura e, com ela, o conteúdo da tradição revelada, mas examinado à luz dos princípios impostos pelo mistério do Verbo Encarnado.

Os usos e os costumes propriamente hebreus, de temperamento hebreu, não puderam resistir muito tempo em comparação com aqueles provenientes do mundo helenístico. Somente restou, talvez como modalidade literária, uma certa influência dos escritores do Antigo Testamento.

O encontro de gregos e cristãos foi decisivo para o futuro de uma assembleia religiosa cuja catolicidade dependia dessa união. Escreve Werner Jaeger que o autor dos Atos dos Apóstolos viu isso com toda clareza quando narrou a visita de Paulo a Atenas, centro cultural e intelectual da Grécia clássica e símbolo de sua tradição histórica. "Paulo pregou neste venerável foro, o Areópago, perante uma audiência de filósofos estoicos e epicuristas, acerca do deus desconhecido. Citou o verso de um poeta grego: 'porque somos também da sua linhagem', e empregou argumentos amplamente estoicos, calculados para convencer mentes educadas na filosofia. Se essa cena inesquecível foi história ou inventada para dramatizar a situação nos começos da luta entre o cristianismo e o mundo clássico, não interessa muito. Ela revela claramente como o autor dos Atos entendia o problema. A discussão entre um e outro mundo requeria um fundamento comum; de outro modo, não seria possível. Paulo elegeu a tradição filosófica helênica que era o aspecto mais representativo daquilo que restava de Grécia nesse tempo" (Jaeger, W., Early Christianity and Greek Paideia, Harvard University Press, Cambridge, 1961, p. 11).

Se desdenhamos a existência de uma revelação feita aos homens por Deus, primeiro através dos profetas hebreus e mais tarde na pessoa mesma de Cristo como encarnação da Segunda Pessoa da Trindade, todo o conteúdo da religião é o produto, ou a criação, de uma mentalidade histórica determinada. Pode-se falar, então, do monoteísmo judaico-cristão como efeito de um psiquismo particular. Nesse caso, decididamente judeu, porque Cristo seria apenas mais um expoente da espiritualidade israelita. 

Os próprios judeus resistem a essa interpretação e, desde que aceitem como explicação final desse mistério histórico as categorias nocionais do racionalismo moderno, verão no cristianismo os resultados de um esforço feito desde a cultura greco-latina, para helenizar as tradições judias. O dilema é irredutível, desde que não se renuncie a considerá-lo à luz da ideologia imanentista que faz da religião mais uma atividade do espírito humano.

A designação judaico-cristã

Se se considera o "traditum" revelado como resultado de uma atividade cultural humana, resultará absolutamente impossível separar o que vem de Deus de tudo quanto põem os homens por sua conta e razão. Se a consciência, historicamente condicionada, é o "nisus" de onde emana a voz da Eternidade, jamais poderemos distinguir a voz de Deus das vozes dos homens. Então podem ter razão tanto Alain de Benoist como seu adversário Bernard Lévy quando, sustentando pontos contrários, condenam a mistura do monoteísmo judeu com o pensamento grego. Porque se, efetivamente, são criações de espiritualidades distintas, o híbrido resultará sempre repugnante para um e outro e o resultado uma mistura inaceitável.

Ninguém pode negar que o povo de Israel, como qualquer outro, teve usos e costumes que dependiam naturalmente de seu temperamento, de suas virtudes, de seus vícios, das vicissitudes da sua história, de sua ignorância e de seus conhecimentos. Separar isso dos conteúdos revelados tem sido a tarefa do Magistério da Igreja. Tarefa lenta e especialmente difícil, porque exige duas coisas: inspiração sobrenatural para não errar na exata apreciação dos dogmas de fé, e separação, distância do temperamento que impôs seus movimentos espontâneos aos redatores da Bíblia.

O Símbolo de Niceia é uma condensação particularmente feliz desse discernimento e prepara, no início do século IV, a formulação de uma Teologia Dogmática que pouco terá que adicionar a seu conteúdo essencial, no transcurso dos séculos.

Esse esforço exegético e seu conteúdo dogmático nada deve à "forma mentis" israelita, mais inclinada às longas dissertações em torno dos artigos da fé, da interpretação da lei ou das visões apocalípticas, mas a uma clara precisão doutrinária onde aparece, com toda a sua força, o gosto greco-romano pela clareza e pela conclusão.

A expressão judaico-cristã tem um certo sentido quando se aplica às primeiras comunidades israelitas convertidas ao cristianismo nos primeiros passos da Igreja Católica. Não obstante, seria necessário examinar muito bem se a designação judeu, para identificar o israelita, não se refere especialmente aos membros desse povo que resistiram com mais força à aceitação da mensagem messiânica do Cristo.

O Evangelho, quando fala de um israelita, nunca o faz com um sentido pejorativo, pelo contrário, a designação geralmente é elogiosa. Disse Jesus quando viu Natanael chegando: "Ecce vere Israelita, in quo dolo non est" (Jo. 1, 47).

No capítulo dez do seu Evangelho, João se refere aos judeus como aqueles que buscam a perdição de Cristo e que, sem crer nas suas palavras, andam ansiosos para vê-lo incorrer em uma contradição que o deixe em maus lençóis com as autoridades:

"Os judeus rodearam-no e perguntaram-lhe: Até quando nos deixarás na incerteza? Se tu és o Cristo, dize-nos claramente."

"Jesus respondeu-lhes : Eu vo-lo digo, mas não credes. As obras que faço em nome de meu Pai, estas dão testemunho de mim."

"Entretanto, não credes, porque não sois das minhas ovelhas" (Jo. 10, 24-26)

De onde nasce esse empenho para colocá-los no redil de Cristo? Não culparei os judeus, porque com toda clareza expressaram, sempre que puderam, sua repugnância por essa mescla absurda. Na ocasião da designação do novo Arcebispo de Paris, que se declarou judaico-cristão, a comunidade israelita da França fez chegar sua nota de protesto por uma confusão que não a honrava.

São Paulo, na sua Epístola aos Gálatas, se refere ao seu antigo pertencimento ao judaísmo como a uma situação que sua conversão superou, abandonando-a a um ressabio dos seus antigos erros frente ao fato cristão. Afirma com clareza o caráter sobrenatural do seu evangelho quando assegura que "Asseguro-vos, irmãos, que o Evangelho pregado por mim não tem nada de humano. Não o recebi nem o aprendi de homem algum, mas mediante uma revelação de Jesus Cristo. Certamente ouvistes falar de como outrora eu vivia no judaísmo, com que excesso perseguia a Igreja de Deus e a assolava; avantajava-me no judaísmo a muitos dos meus companheiros de idade e nação, extremamente zeloso das tradições de meus pais" (Gal. 1, 11-14).

Na última de suas Epístolas se dirige aos hebreus, não aos judeus, ainda que isso não signifique que o termo judeu tivesse sempre uma acepção oposta a Cristo. Na Carta aos Romanos, fala do judeu como aquele que, antes de todos, recebeu a Revelação e mantém essa significação ao longo de toda a epístola.

O núcleo da religião está constituído pela Revelação e essa, em sentido estrito, não é judia, ainda que o povo hebreu houvesse sido elegido por Deus para sua recepção. Chamar os conteúdos revelados por Jesus de judaico-cristãos teria sentido se não fossem revelados, mas sim o fruto da espiritualidade hebreia, como foram suas instituições, seus cânticos, suas visões e sua história nacional. Se aceitássemos como essencialmente demonstrativa essa expressão, o cristianismo seria judeu-grego-latino, porque teria surgido da atividade cultural desses três povos ou, senão, para sermos mais simples, poderíamos chamá-lo propriamente judeu, dado que Cristo não seria outra coisa que uma expressão cultural de Israel.

Sabemos muito bem que tais erros, quando se reiteram com assiduidade, nunca são gratuitos. É uma maneira de aproximar-se do judaísmo com todas as características de um oferecimento pouco honrável. O israelita declinou em judeu na mesma medida que acentuou sua oposição ao cristianismo e, como esta é uma opção livre, aceitamos ser uma e outra coisa com a plena responsabilidade das suas consequências naturais e sobrenaturais. Os termos judeu e cristão não são compatíveis, supõem decisões religiosas opostas e se deram, primeiramente, no seio do povo hebreu e, pela projeção de uma e outra espiritualidade, se transladaram ao mundo dos gentios.

A civilização hebreia

A "Torá", essa minuciosa legislação que traduz a vontade de submeter todas as atividades da vida humana a um estrito controle religioso, é a expressão mais acabada do espírito sagrado da civilização hebreia. Nada escapa ao seu impecável formalismo: a ciência, a política, a arte, a economia e até as mais íntimas relações do homem com a sua realidade corporal estiveram severamente regulamentadas pela lei. Ela é o espírito feito carne, se se quer vê-la na perspectiva de uma prefiguração, mas um espírito fixado na férula da prescrição inamovível e a que o temperamento judeu concluiu articulando a mesma com minuciosidade maníaca, até sufocar o sopro da inspiração profética.

O verdadeiro judeu era o homem que sabia sempre o que tinha de fazer, porque assim dispunham as normas irrevogáveis. Quando entre eles surgia o homem inspirado pelo Espírito de Deus e agitava sua consciência, perturbava-se como diante de um feito escandaloso e tratava-se de calar sua voz para retornar à segurança de seus firmes parâmetros legais.

A ciência hebreia foi fundamentalmente jurídica, e os homens que melhor representaram essa sabedoria foram chamados "Doutores da Lei". Mais que legisladores, foram os exegetas prolixos das fórmulas tradicionais, cuja frente era o código da aliança proposta por Yaveh. O Deuteronomio 28, 69 afirma que "Eis as palavras da aliança que o Senhor ordenou a Moisés que fizesse com os israelitas na terra de Moab, além daquela que tinha feito com ele em Horeb."

Como essas regras, leis e preceitos provêm diretamente de Deus, o compromisso de cumpri-las não tem escapatória. Suponhamos, como conjectura historicamente válida, que muitos desses mandatos estão vinculados com o temperamento particular dos judeus e têm por missão apartá-los de certas tentações às quais eram sensíveis pois, embora pertençam ao corpo total da Sagrada Escritura, sua vigência deixou de ter a força que teve em seu momento. Claramente é lei religiosa e, como está essencialmente destinada a defender a aliança imposta pelo Senhor, as faltas contra Deus são mais vigorosamente castigadas do que aquelas que atentam contra a santidade do povo eleito.

O ensino da lei foi confiado ao sacerdote e, por seu intermédio, à comunidade que devia ser instruída nela, tanto para o comportamento do culto como em todos os aspectos práticos contemplados pela tradição.

Politicamente, Israel foi uma teocracia governada diretamente por Deus através do caudilho profeta. Quando os judeus pediram um rei "para ser como as outras nações", fizeram-no com segurança de que esse rei seria confirmado pela decisão de Yaveh e que governaria em seu nome. Deus escolheu a Saul, e esse exerceu seus carismas como chefe militar da nação hebreia.

A sucessão de Saul por Davi é narrada como um acontecimento diretamente atribuído à intervenção divina. Apenas com a separação dos reinos de Israel e de Judá se dá, neste último, uma forma política que escapa, em alguma medida, ao princípio carismático da teocracia israelita. Em contrapartida, Israel manteve com vigor a vigência da inspiração divina na designação do rei.

Como escrevia Roger de Vaux em suas Instituciones del Antiguo Testamento, não se pode falar em uma concepção israelita de Estado. Israel é o povo de Yaveh e não há outro Senhor que Ele. Israel é uma comunidade religiosa, sacrificial, e seu governo é uma teocracia.

Pode-se assegurar que a vida política de Israel esteve subordinada a critérios religiosos e o mesmo podermos afirmar de suas atividades econômicas que dependeram, durante os séculos em que se viveu sob a autoridade da aliança, de um modo de pensar religioso.

A comunidade santa tinha, para com os bens deste mundo, uma relação estritamente determinada pela lei. Só em sua relação com os estrangeiros podia o israelita afastar-se um pouco do estrito cumprimento das normas sagradas, e isso em sua decadência, quando o espírito de lucro havia entrado para sempre em seus costumes.

A ausência de uma plástica de grande envergadura não tira de Israel a existência de algumas formas muito elevadas e expressivas da arte sagrada, como são a poesia e o canto, as glórias mais puras de sua liturgia. Tinha razão São Bernardo, quando escrevia ao comentar os Salmos atribuídos a Salomão:

"Contempla agora a glória daquilo que se compara com o céu, tanto mais glorioso quanto mais divino. Não é sem justiça que toma por imagem a semelhança que extrai de sua origem. Pois, se por seu corpo que vem da terra é comparada às tendas de Cedar, por que por sua alma, que vem do céu, não se glorificará de ser semelhante a esse céu quando sua vida testemunha tal origem e certifica que pertence à pátria celeste?"

Para recapitular brevemente nossa opinião sobre a civilização hebreia, diremos que se trata de uma típica civilização sacral, porque todas as atividades do espírito são realizadas com critérios religiosos. Para encontrar algo semelhante, terá que esperar [aparecer] o Islã e sua total submissão às prescrições corânicas. Não podemos esquecer que o sincretismo religioso de Maomé foi um judaísmo feito à medida do espírito árabe e, na autorizada opinião de R. P. Théry, que escreveu sob o pseudônimo de Zacarias Hanna, o Corão é a obra de um rabino judeu impregnado até a medula do Antigo Testamento e do Talmud.

É muito difícil, diríamos impossível, encontrar uma civilização totalmente profana, mas, se examinamos os critérios predominantes nas diversas atividades culturais da latinidade, veremos que essas se movem em um âmbito de discreta liberdade. Isso permite uma discussão dos seus princípios à luz de razões que se fundam na essência de cada atividade e não em mandamentos religiosos.

Nunca se negou na cristandade que Israel foi o povo eleito por Deus para manter em seu seio a promessa messiânica. Por isso convém, quando se examinam as relações entre o povo de Israel a cristandade, distinguir com cuidado aquilo que pertence ao depósito divino e o que é obra do sangue, da sensibilidade e da inteligência do povo hebreu. Muitos judeus se tentam hoje com a adscrição de Nosso Senhor Jesus Cristo a isso que se chama "o espírito da cultura israelita". Não apenas judeus, também há cristãos, com títulos sagrados, que falam do Rabi Ieschoua de Nazareth, como se definitivamente sua mensagem ao povo de Israel não fora mais que um eco da sabedoria israelita.

Claro que uns e outros não apreciam com suficiente vigor o caráter revelado dessa mensagem, nem a clara vontade de Cristo de se colocar, em relação a Israel, acima de qualquer condicionamento nacional. Jesus obrou em todo momento como Deus feito homem e não como judeu. Reclamou para si uma autoridade e uma obediência que nenhum cidadão israelita poderia reclamar.

Sócrates, Platão, Aristóteles são gregos na medula de sua espiritualidade e temos que agradecer à Hélade a herança dos seus respectivos ensinamentos. Mas Cristo é Deus e, embora encarnado no seio de uma Virgem hebreia, nem seu espírito, nem suas palavras estão circunscritas às fronteiras do povo onde nasceu. Na relação vital Cristo-Israel, o último é o veículo ou, se quiser, o meio através do qual ressoa a eternidade do Verbo. Podemos agradecer a Israel o fato de haver nos transmitido a Bíblia, a língua, a voz e o tom de suas preces, o temperamento de seus profetas e o corpo imaculado da Virgem Santíssima. A revelação é assunto de Deus, Pai de todos os homens e, seja qual for o instrumento mediante o qual se fez conhecer, ela é sua obra e não obra dos homens.

Nossa interpretação não pode ser distinta daquela de Paulo, quando disse que os hebreus incorreram no erro de colocar suas obras sobre a fé: "Desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus. Porque Cristo é o fim da Lei, para justificar todo aquele que crê." (Rom. 10, 3-4)

A Igreja se instaura sobre a civilização greco-latina

Assim como Deus elegeu o povo de Israel para que de seu seio nascesse o Messias, elegeu uma civilização para estabelecer sobre ela sua Igreja. De Israel exigiu a lealdade à Aliança e sobre os que foram fiéis edificou sua comunidade sacrificial. Da latinidade, tomaria as obras: o idioma, as ciências, o direito, a arte, os critérios políticos, econômicos e militares. Em uma palavra, tudo isso que a latinidade, assumindo o esforço genial dos gregos, plasmou com seu gênio peculiar.

Em que consiste esse gênio e por quê Deus pôs seus olhos em Roma para que fosse a cabeça de sua Igreja?

É um velho princípio de sabedoria teológica admitir que os desígnios da Providência são inescrutáveis. Não é fácil adivinhar os critérios que dirigem suas predileções, especialmente quando essas tendem a colocar em relevo a onipotência divina pela modéstia do seu instrumento conjunto. Mas também convém recordar que nem sempre prevalece esse ponto de vista providencial. Na eleição de Davi e de Paulo, na própria eleição de Maria Santíssima, apareceu outra classe de preferência, porque nenhum deles foi por si mesmo insignificante e o Senhor encontrou complacência em suas virtudes naturais para preenchê-los mais tarde com a força dos seus dons gratuitos.

Atreveria-me a afirmar que a importância política de Roma, seu gênio universal e essa disposição prática que mostrou no governo de outros povos não deixaram de entrar nos desígnios da Providência, nem careceram de forças para que Roma fosse eleita como instrumento da expansão universal da Igreja Católica.

Israel foi um povo sumamente particularista. Talvez pelo temperamento, ou quiçá porque a consciência de ter sido eleito por Deus entre todos os povos da terra, forjou em seu espírito a convicção de um destino único. De qualquer modo, se chegou a compreender a universalidade da mensagem profética, nunca teve a humildade de apagar sua própria personalidade na catolicidade de sua missão.

A influência da ideologia moderna no nosso modo de conceber a história nos fez bastante ineptos para perceber a presença da Divina Providência nas expressões religiosas dos povos. Isso que em tempos melhores parecera essencial, resulta hoje supremamente anti-histórico. O historiador, seguro do seu ofício, está disposto a baixar pudicamente os olhos cada vez que tropeça em algum indício misterioso nos presságios que tem um povo sobre seu próprio destino.

Atenas foi fundada no mesmo lugar onde existia um culto antigo a Palas Atena, deusa da inteligência que devia presidir o curso histórico dessa cidade, onde a razão humana alcançou seu ponto mais alto. Roma se formou sob a proteção de três divindades: Júpiter, Marte e Quirino, a lei, a guerra e o governo. Por pouco que creiamos na influência que essas expressões da divindade puderam ter no destino dessa cidade, não deixa de chamar a atenção a confirmação plena e cabal do que pôde ser, nos seus inícios, um obscuro pressentimento. Não falamos da formação de Israel ou da cristandade, porque se derramou tanta tinta para ocultar os desígnios luminosos da Providência que todo esse esforço de ocultação põe ainda mais em evidência o selo sobrenatural de suas origens.

Os antigos nunca duvidaram de que a melhor maneira de escrever a história de um povo era através da poesia épica. O poeta não só tinha olhos para os acontecimentos, mas também sabia examinar detalhadamente, com penetração religiosa, os sinais do tempo. Quando Virgílio descobriu a Idade de Ouro que traria como consequência a paz de Augusto, não fazia simplesmente o trabalho de um "prospectivista" moderno que sopesa, com certa destreza política, as consequências de um bom tratado de paz. Muitos dados que hoje são a especialidade do charlatão agiam na mente do poeta e conjugavam em seus vaticínios uma constelação de elementos misteriosos. Os astrólogos haviam visto um cometa pouco depois da morte de César e descobriram estranhas coincidências entre a paz de Brindisi e a aparição da constelação da Virgem, que foi a ocasião para que Virgílio escrevesse sua IVª bucólica.

Na Eneida VI, 851 e ss., confirma: "Que os outros povos, como os gregos, deem vida ao mármore e ao bronze, convertendo-os em figuras, e estudem o curso dos astros. Tu, romano, recorda que deves governar os povos e fazer durar a paz, perdoar os dóceis e abater os soberbos".

A missão era essa, e a grandeza de Roma respondeu com êxito à sua vocação profunda, criando no terreno político-cultural as condições desse tempo propício que o Novo Testamento chama com o termo grego "Kairos" para distingui-lo do tempo comum da nossa cronologia habitual. O "Kairos" foi o momento adequado para a chegada de Cristo, o tempo maduro que se realizava, zodiacalmente, com a constelação da Virgem.

As predições proféticas, os vaticínios virgilianos e a conjugação das estrelas se unem estrondosamente para anunciar a nova idade. Mas essa harmonia histórico-cósmica, em vez de nos levar a nos aprofundarmos no valor sacramental do universo, enche-nos de tristeza, como se tivéssemos nascido não para compreender, mas somente para combater a profundidade do segredo divino.

Roma foi erigida por inspiração do Espírito Santo, e porque sua eleição supunha a adoção do instrumento apto para expandir a fé e conservá-la no idioma mais adequado por sua essencialidade e sua precisão enunciativa. Essas são as virtudes que permitiram a permanência das verdades contidas no traditum e a possibilidade de que fossem claramente explicadas a todas as inteligências.

Uma das piores tentações que ameaçam o cristão de hoje é renunciar à férula romana para substituí-la por um angelismo de um Evangelho sem fundamento civilizador. Nestes tempos nasceu a ideia peregrina de renunciar às categorias intelectuais greco-latinas para favorecer, como se diz, um utópico encontro semântico com outras civilizações.

É curioso perceber, ao mesmo tempo, que essas outras civilizações com as quais se sonha dialogar, não sei em qual idioma, apressam-se em abandonar seus hábitos mentais tradicionais e tomam de nós o léxico nocional saído das ideologias liberais e socialistas. Enquanto o diálogo se realiza no erro do ideologismo, nossos teólogos "up to day" pedem que se renuncie às formas clássicas do pensamento greco-latino para recuperar não se sabe quais costumes religiosos abandonados, que seus próprios detentores trocam pela difícil linguagem publicitária dos nossos periódicos.

A encarnação do Espírito se dá em um ponto preciso, singular e concreto. Aí se faz carne, emerge no tempo e no espaço, assumindo as condições impostas pela história, o clima e a raça. Deus escolheu como mãe do Verbo uma virgem hebreia, a uma jovem de carne e osso que pertencia, por seu sangue, à estirpe de Davi. Aqui não há simbolismo nem abstração. Não se trata da noção universal de virgindade para satisfazer a vaidade filológica de algum imbecil ou o orgulho ferido das raças cujas virgens não foram escolhidas.

Os apóstolos também pertenceram ao povo de Israel e, sobre essa base humana, Nosso Senhor fundou sua Igreja. Desejou-se que em um momento determinado essa comunidade sacrificial tivesse sua cabeça em Roma e se expressasse principalmente em latim; fez-se assim porque convinha que assim fosse e porque essa é a única maneira de inciar uma ação entre os homens, tomando o instrumento conjunto que melhor pode servir aos desígnios providenciais que, nesse caso, eram essencialmente católicos.

Roma, e a civilização que nasceu de seu encontro com a revelação cristã, foi escolhida por muitas razões que nós ignoramos, mas é preciso perceber que a civilização latina foi a mais adequada, por suas condições, para cumprir a missão universal da Igreja.

Nossa intenção não é, no momento, discutir com quem nega à fé cristã seu papel civilizador e faz uma arbitrária distinção entre o cristianismo primitivo e a organização que a Igreja Católica Romana deu a essa força mística. Segundo essa ótica, a disciplina eclesiástica é um acontecimento posterior ao século primeiro e se origina em Roma, provavelmente sob a influência pagã. O cristianismo carismático, cuja cabeça limitada vê-se aqui e ali entre protestantes e católicos, seria um retorno às fontes messiânicas do cristianismo hebreu, milenarista e igualitário.

Não é difícil descobrir nessa distinção a presença do protestantismo, mas se os reformadores buscaram na erroneamente chamada Igreja Primitiva a mentalidade que beneficiaria suas próprias posições anárquicas, convidaria-os a ler o que o Reverendo Paul Tillich disse a respeito em suas reflexões sobre Pensamento Cristão e Cultura do Ocidente:

"O bispo é sacerdos, a função principal do sacerdote é sacrificial. O sacerdote sacrifica os elementos na Ceia do Senhor e repete assim o sacrifício consumado no Gólgota. Imita o que fez Cristo. Oferece um sacrifício verdadeiro e perfeito a Deus pai dentro da Igreja. Uma vez mais, isso não era idêntico à missa católica, mas conduzia inevitavelmente para ela".

E acrescenta, em outro parágrafo, para completar sua opinião a respeito de um pretendido retorno protestante às fontes do cristianismo primitivo:

"A Igreja Católica já estava formada perto do [ano] 300 de nossa era. É por isso que não podemos dizer que o protestantismo é uma reafirmação dos primeiros séculos. Os elementos católicos tiveram muito poder desde o início. Esse é um dos motivos pelos quais a solução intermédia do anglicanismo não funciona. O chamado acordo dos primeiros cinco séculos não é, a partir de nenhum ponto de vista, um acordo com os princípios da Reforma. Portanto, se alguém sugere que nos unamos, regressando ao desenvolvimento que transcorre desde Irineu até Dionísio Areopagita, eu diria a ele que se converta ao catolicismo, porque o protestantismo não pode fazer algo semelhante. Nesses primeiros séculos há muitos elementos na doutrina da Igreja que o protestantismo não pode aceitar. Ocorre o mesmo com o sistema de Autoridades, a teoria dos Sacramentos; em menor medida, a respeito da Trindade e da Cristologia" (Tillich, Paul, Pensamiento Cristiano y Cultura de Occidente, La Aurora, Buenos Aires, 1976, p. 79, tomo I).

A civilização latina, enquanto recebeu o influxo da religião católica, começou o grande périplo de uma transformação cultural solicitada pela pressão misteriosa da Graça. Os efeitos transfiguradores da vida sobrenatural não só se fazem sentir sobre a alma individual, influem também sobre as atividades do espírito como a ciência, a economia, a arte e a política, sob a influência do homem sobrenaturalmente regenerado.

Os inimigos da Igreja atacam seus ensinamentos a partir de duas visões: o estoico pagão e o ideólogo moderno. A distinção não significa que o primeiro deles pertença ao passado e tenha desaparecido totalmente dos nossos hábitos mentais. Hoje, pode-se perceber um recrudescimento um tanto arqueológico das acusações de Celso, que encontram uma fácil escusa na invasão do sentimentalismo exacerbado que afeta a hierarquia da Igreja.

O prato principal dos injuriosos estoicos residia na prédica plebeia e contrária a toda excelência que atribuíam à Igreja. Refúgio de gente estúpida e sediciosa, alentava todos os ressentimentos de um povo escravo contra o que podia existir de nobre e forte nas classes superiores da civilização greco-latina. Aos novos corifeus do estoicismo universitário não custa nada ressuscitar essas mentiras, criando a versão de um monoteísmo judaico-cristão, fundamentalmente torpe, anarquizante e apátrida, lançado com toda a força negativa do ressentimento, contra a ordem e a hierarquia da sociedade pagã;

Não é necessário aos apologistas cristãos forçar a doutrina para defendê-la de uma impugnação tão gratuita e contrária ao ensino do Magistério Eclesiástico. É verdade que alguns aspectos do contexto evangélico podiam dar lugar a uma interpretação ressentida, mas precisamente o papel da Igreja foi evitar a unilateralidade na interpretação dos textos sagrados e deter a inflação dos parágrafos soltos. Desta maneira, protegeu a propagação de uma disciplina que, sem deteriorar o conteúdo escatológico da fé, harmonizava com as exigências da vida civilizada em suas mais nobres expressões.

O estoicismo critica no cristianismo a exaltação da humildade e o socialismo moderno seu desdém pela questão social. Um e outro sem nenhuma inteligência para perceber o ponto de vista em que se coloca a Igreja e que permite dar a resposta cabal a todos os problemas fundamentais da realidade humana.

A "humilitas" é a consciência de finitude e de dependência total perante Deus que descobre o único caminho verdadeiro pelo qual pode transitar nosso reencontro com o Absoluto. A questão social, como se diz hoje, não se poderá resolver jamais se não é na figura da generosa entrega dos fortes a serviço dos mais fracos. Isso pode parecer uma utopia se leva-se em conta as fraquezas da nossa natureza decaída e sua vigorosa inclinação ao abuso, mas é muito mais difícil esperá-la de uma mudança que não tenha sido auspiciada pela conversão espiritual do apetite.

O cristianismo, em sua acepção romana, nunca negou o valor da propriedade privada como fundamento econômico da vida familiar, nem predicou uma igualdade que desconhecesse as hierarquias naturais e históricas da ordem social. Por vezes, ensinou que essas hierarquias não constituem privilégios válidos para o Reino de Deus. Existem, são boas e necessárias para embasar a sociedade terrena. Impõem-se como uma consequência lógica das aptidões desiguais que os homens possuem no exercício de suas atividades temporais. Quando se trata do Reino de Deus, as condições exigidas são outras, outras as desigualdades e outros os parâmetros para medir os méritos.

Nunca se sustentou na cristandade que a boa disposição para fazer uma excelente carreira honrosa fechará as portas do céu, ainda que se tenha prevenido sempre contra a excessiva adesão aos bens materiais. Do que se falou a todo instante foi do desapego e do caráter efêmero de tais bens e da generosidade que é bom possuir para utilizá-los em favor dos mais fracos. Tampouco se ensinou que a debilidade, a pobreza e a ausência de dignidade valessem por si mesmas.

A fé, a esperança e a caridade não são virtudes imbecis e com uma exagerada propensão a crescer em terrenos covardes. Requerem, antes de tudo, uma boa vontade e uma inteligência dócil ao dado revelado e pouco influída pelo desejo constante de justificar más paixões e interesses baixos. Se pensarmos bem, para ser um bom cristão é necessário uma limpeza de alma pouco comum e isso, no fim das contas, implica uma nobreza.

Para concluir nossa reflexão com uma referência precisa à interrogação do título, convém dizer que a aproximação destes dois termos, judaico-cristão, tem um sentido muito limitado quando se refere às comunidades cristãs formadas por judeus conversos, que mantinham as tradições culturais do povo de Israel. Com essa acepção a utilizou Jean Daniélou em seu conhecido livro Théologie du Judéo Christianisme editado por Desclée em 1958. Aplicado às verdades reveladas por Deus, traz consequências lamentáveis porque relativiza o conteúdo religioso, fazendo-o depender da civilização hebreia, e isso não é católico, embora venha com a pretensão de ser muito protestante e moderno. Tampouco é aceitável se o aplicamos à nossa civilização, que é, essencialmente, greco-latina, apesar de tudo quando possam dizer Alain de Benoist e Bernard Henri Lévy em seus livros Comment peut on être Païen? e Le Testament de Dieu, que parecem especialmente escritos para ilustrar como podemos nos equivocar brilhantemente quando colocamos no que dizemos mais paixão que inteligência.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

O homem desamparado

Artigo do Mons. Dr. Octavio Nicolas Derisi para a revista Reconquista, volume I, nº 3 (1950)

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Octavio Nicolas Derisi, expoente do neotomismo argentino na metade do século XX

1. O homem não é a plenitude do ser. Contingentemente existente, seu ser está recortado na sua existência pelas notas finitas de sua essência.

Daí que o não-ser da finitude seja sua herança essencial, que limita sua entranha ôntica e circunscreve sua atividade ao modo do seu ser. A fraqueza, a enfermidade e a morte, no plano físico, a ignorância e o erro no de sua inteligência, as paixões, a debilidade de sua liberdade e a defecção moral, no plano de sua vontade; em uma palavra, o não-ser do ser, no plano ôntico - que no plano físico e moral constitui o mal - desgarra e compromete constantemente a perfeição do seu ser e de sua atividade em todas as ordens. 

2. Precisamente o não-ser a plenitude do ser senão somente tê-lo contingente e finitamente, é um indício de que o centro de gravidade do homem está fora dele: a Causa primeira e o Fim último de sua existência, sua origem primeira e seu destino definitivo, o transcendem infinitamente. Seu ser só pode vir do Ser ou Existência necessária e infinita e, por isso mesmo, tampouco seu Fim ou Bem supremo pode ser outro que esse mesmo Ser infinito. 

Desde então, não só sua realidade substancial como sua mesma atividade específica espiritual e, por essa, toda sua vida só se libera do não-ser da limitação na medida em que, transcendendo os limites da sua própria imanência ôntica, se enriquece com a possessão do ser transcendente -  identificado com a verdade e o bem - em direção ao Ser transcendente - Verdade e Bem - infinito, que lhe confere sua própria e imanente plenitude. 

Desde então, o caminho de perfeição do homem aparece como uma subordinação e ordenação ao ser transcendente, recorrido com esforço até a penetração do ser transcendente, na sua imanência infinita. Com o ser, penetra no homem a perfeição, a verdade e o bem. 

Submetendo-se a tal ordenação até seu último Bem ou Ser transcendente divino, através do ser ou bem das coisas e do mundo, o homem não só permanece ele mesmo articulado e centrado no término definitivo de sua perfeição e no caminho até ela, como que nele cobram sentido e se ordenam as coisas em um plano hierárquico: a realidade material serve ao seu ser corpóreo, seu corpo à sua vida vegetativa, essa à sua vida consciente material ou sensitiva e essa, por sua vez - e por ela as anteriores - à sua vida espiritual. Todo o inferior ao homem como tal fica assim subordinado e integrado nele, e por ele, à ordem divina. Porque por este último trecho de seu ser e vida espiritual, que o coloca em seu ser específico e acima de todo ser material, o homem se abre à transcendência do ser - verdade e bem - e, em definitivo, à transcendência do Ser de Deus, Bem infinito em cuja posse se aperfeiçoa e atualiza plenamente em sua própria imanência. E, ao encontrar seu definitivo destino divino, além do seu próprio ser e atividade, o homem, subordinando-se a Deus como a seu Bem ou Fim supremo, encontra o caminho da própria perfeição ôntica: o caminho da verdade e o caminho do bem moral ou especificamente humano. Chegando a Deus como Verdade suprema, descobre a verdade e o sentido recôndito das coisas. Chegando a Deus como a seu Bem supremo, descobre a norma moral que canaliza sua atividade livre até sua perfeição junto com o motivo último de sua submissão à ela. E, pelo homem assim ordenado em busca de seu Fim divino, no caminho até sua perfeição, a verdade e o bem, todas as coisas inferiores - e ainda os aspectos subalternos de seu próprio ser - enquanto a ele se subordinam são conduzidos à sua própria perfeição, à plenitude do seu próprio ser. Cegas para descobrir e encaminharem-se a si mesmas ao seu último Fim divino, submetidas e servindo ao homem, consciente e livremente subordinado a Deus, seguem o caminho até aquele definitivo destino.

Nessa mesma subordinação ao Ser transcendente, encontra ele a norma moral, que o vincula com deveres e direitos frente aos demais homens individual e socialmente considerados.

Deus se apresenta, assim, desde sua transcendência infinita, como a pedra angular que sustenta não só como Causa primeira, mas também como Fim ou Bem supremo, todo ser em si mesmo e em sua atividade: o mundo e o homem. A ordenação hierárquica do mundo material ao espiritual, e do homem à verdade e ao bem e, em geral, à sua perfeição específica pela trilha corpórea e espiritual, pela via intelectiva e volitiva moral - contemplação e ação - assim como a organização social dos homens entre si está condicionada e sustentada, desde a transcendência, em Deus, pelo reconhecimento e submissão ao Ser divino e à sua Lei eterna que é, por isso, a Lei do aperfeiçoamento do homem e, pelo homem, das coisas. A palavra de Deus: Servire Deo regnare est, tem cumprimento ainda na ordem puramente temporal ou filosófica. 

Se o homem natural deixa de apoiar seu ser e atividade no ser transcendente e, em definitivo, no Ser de Deus, toda essa ordem ontológica se desarticula e se derruba, toda essa hierarquia ôntica se desvanece e é substituída pela anarquia das forças cegas saídas de seu canal racional; e o homem perde o caminho de sua perfeição, da verdade e do bem, desaparecido em seu ser finito e contingente, sem sentido, sem razão de ser, contraditório em si mesmo, despojado de toda norma de verdade para sua inteligência e de bondade para sua vontade livre; o mundo material se torna opaco e absurdo, perde sua subordinação ao homem, desde que ele perdeu a sua para com Deus, quem dava razão de ser e sentido a toda essa articulação orgânica e hierárquica do ser; e a ordem jurídica, que nutre suas raízes nas fontes da moral, é despojada de seu fundamento e fica reduzida e substituída por uma ordem puramente mecânica e de força do Estado.

Por todo lugar [reina] a desordem, a imperfeição, a ignorância, a destruição e o mal.

3. Na Idade Moderna, o homem sucumbiu paulatinamente à tentação de independência e tentou desfazer-se gradualmente de sua essencial submissão e de articulação no ser e de suas exigências ontológicas, substituindo uma ordem hierárquica, dependente e sustentada em Deus, por uma suposta ordem de absoluta liberdade, de independência de todo vínculo estabelecido e exclusivamente dependente do próprio homem. 

Mas o homem esqueceu que nessa subordinação e, em última instância, a Deus, seu ser finito e contingente encontrava o fundamento de sua própria perfeição e das coisas a ele ordenadas, sua defesa e, com esse acréscimo de seu ser e de sua vida, o caminho até sua autêntica liberdade: do domínio sobre as paixões e sobre sua própria atividade, assim como sobre as coisas a ela submetidas, e a ordem com os demais homens em uma sociedade organicamente estruturada. Em uma palavra: a ordenação de seu próprio ser e de sua atividade dentro de si e dentro de uma ordem ontológica total. Ao tentar romper os vínculos com a transcendência do ser divino sob o pretexto de conquista do seu próprio ser humano e independência, de fato [o homem] se privou de sua própria defesa e perfeição e introduziu o princípio de dissolução e, com ele, de sua própria escravidão e desamparo frente aos demais e às forças cegas do instinto e da matéria.

Desarticulado da fonte ontológica de sua perfeição e da perfeição do mundo, o homem perdeu em seu conhecimento a visão integradora da realidade total e, na sua vontade livre, a norma e perfeição moral e, por conseguinte, o fundamento da convivência social. O homem começou arruinando-se como homem, em sua vida especificamente humana.

Mas o processo de desintegração crescente, que se inicia daquele princípio equivocado, não se deteve nas camadas superiores da vida e do ser humano; penetrou mais fundo até desarticular os seres e forças materiais do domínio do homem, assim como privar o mesmo da segurança de sua existência  e vida material.

O antropocentrismo renascentista quis desatar as forças materiais, descobriu suas leis e aprendeu a dominá-las e manejá-las. E com seu mesmo uso chegou paulatinamente até descobrir e assumir o controle sob as forças mais poderosas do mundo inorgânico, até a desintegração do átomo. Porém, essa mesma cosmovisão que alentou e favoreceu o progresso científico, sempre através do mesmo princípio de desvinculação do ser transcendente, de Deus, em última instância, careceu do poder integrador de tais descobrimentos e frutos da ciência no bem específico do homem, da subordinação do uso de tais forças à norma moral ou de aperfeiçoamento humano, precisamente porque essa se funda em Deus. Toda a atividade humana perdeu, assim, seu centro de gravidade, sua norma e princípio de perfeição específica e, desse modo, sucessivamente se amoralizou em suas diversas ordens: a filosofia, a arte, o direito, a economia, a ciência e a técnica. Primeiro foi a independência ou laicização da filosofia, logo da moral e do direito e da economia, depois da arte e, finalmente, da ciência e da técnica. O homem desatou sucessivamente as forças naturais - a desintegração do átomo assinala seu cume -; mas, quando se cria dono dessas forças e fortalecido em seu poder material com elas, é aqui que se encontra impotente para dominá-las e submetê-las ao seu próprio bem. Desarticuladas da moral - que é o mesmo que dizer: do princípio de perfeição humana ou, mais brevemente, do bem do homem - tais forças cegas e infinitamente superiores à força física do homem se voltam agora contra ele e ameaçam destruir sua mesma existência e as condições de sua possibilidade sobre a terra.

É assim, como por um processo de descomposição - implacável e cego como a matéria, de cujo determinismo brota, uma vez apodrecido seu vínculo de subordinação à atividade espiritual e livre do homem - este, que ilusoriamente creu que, desarticulando-se e insubordinando-se contra Deus e, com Ele, de toda norma e sujeição, iria encontrar-se mais plenamente dono de si mesmo e encontrar sua inteira liberdade sobre si e o domínio do mundo material, esquecendo-se que não é a plenitude do ser, que não é Deus, mas apenas ser finito e contingente e, como tal, dependente de Deus para todo o seu bem autêntico; privou-se realmente do princípio e fundamento de sua própria perfeição, fechando todos os caminhos de sua íntima ascensão, condenou-se ao desamparo e aniquilamento, primeiro em sua interioridade espiritual, e logo em sua própria vida material, abandonado a um mundo social anarquizado que o despedaça, sem proteção de seus direitos frente aos demais e ao Estado e a um mundo material de forças desatadas e desarticuladas das normas morais e humanas, que ameaçam aniquilá-lo totalmente.

E encaremos esse homem que, sonhando em sua humanização e liberdade absolutas, morre agora de inanição humana, quebrada a comunhão com a fonte transcendente divina que o alimentava em sua própria vida imanente, sem rota em sua vida intelectiva, rodeada de erro e de ignorância nos problemas fundamentais de sua existência - o quê somos, de onde viemos e para onde vamos - sem norma moral para conduzir-se a si mesmo até sua própria perfeição e se vincular com os demais homens em uma sociedade orgânica e submeter as forças materiais ao seu próprio bem; submetido, desse modo, à sua ignorância, às suas paixões, à violência dos demais e à brutalidade das forças cósmicas.

O resultado não pode ser mais paradoxalmente desastroso frente o tentado em seu começo. E, porém, devemos confessar, este trágico término estava eviscerado naquelas desgraçadas premissas essenciais de independência frente ao ser e, em definitivo, frente a Deus. 

O interior da catedral de Metz, com seus arcos e pedras angulares que os sustentam, assim como todo o edifício humano, dependente de Deus


4. As autênticas conquistas do direito, da economia, das ciências matemáticas e indutivas, da arte e da técnica perderam sua unidade orgânica, sua integração e subordinação ao homem, desenvolveram-se com inteira independência e, desarticuladas inteiramente desse, desumanizaram-se e se anarquizaram precisamente porque, ao desarticular-se de seu Fim supremo e divino, o homem perdeu o sentido de sua própria vida e o fundamento supremo e princípio de toda a ordem hierárquica, removeu a pedra angular que sustentava o magnífico edifício da organização que durante séculos foi elaborada durante a Idade Média e deu luz à cultura ocidental. Partindo de um mundo desorganizado e análogo ao nosso, sob o alento e direção de uma concepção teocêntrica e aproveitando os restos em decomposição da cultura antiga, o Cristianismo conseguiu lhes infundir um novo espírito e forjar assim uma ordem orgânica, que deu origem à cultura greco-latina-cristã, à Cristandade, à Europa.

Com todas as suas deficiências e limitações, essa cultura, cimentada, alimentada e organizada sobre o ser ou bem e, definitivamente, sobre o Bem supremo, submetendo o homem às exigências normativas desse último Fim transcendente, encaminhou-o pela trilha de sua própria perfeição e submeteu a ele todos os estratos inferiores do ser e atividade, incorporados na ordem humana. Perdendo-se em Deus, encontrou-se plenamente a si mesmo e encontrou o sentido de seu ser e atividade no tempo e na eternidade, e a submissão hierárquica dos aspectos inferiores do próprio ser e atividade do homem e dos seres exteriores a ele: a integração de todas as coisas no homem e do homem em Deus.

5. O desamparo do homem atual frente a suas próprias criações da arte, da economia, do direito, das ciências e da técnica, desarticuladas e adversárias da perfeição humana a que essencialmente estavam dirigidas, assim como perante as forças materiais desatadas por essa ciência e técnica, e sobretudo seu íntimo e interior desamparo em sua vida específica, em sua inteligência e vontade, desarticuladas de seu próprio objeto e Bem infinito e condenadas, assim, à esterilidade e autodestruição - desamparo do qual se deriva aquele primeiro - só tem uma saída: a reintegração da vida e do ser espiritual humano em seu verdadeiro último Fim transcendente, em Deus e, por ela, o reencontro do caminho da verdade para a inteligência e da norma moral para a vontade livre, a reintegração de toda a sua atividade e ser inferior, e das coisas e forças exteriores subordinadas àquela, a seu próprio bem especificamente humano.

Precisamente porque somos de e para Deus, reconhecendo nossa origem divina e ordenando-nos a Deus como a nosso supremo Bem, encontramo-nos e realizamo-nos plenamente como homens e, quando fazemos isso, reconhecendo que somos de e para Deus, as coisas, por sua vez, encontram seu próprio destino e perfeição no serviço e subordinação ao homem. Omnia vestra sunt: vos autem Christi, Christus autem Dei (I Cor. III, 23).


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