sexta-feira, 30 de novembro de 2018

O sentido comunitário do casamento e da família

Excelente artigo escrito pelo jurista católico José Pedro Galvão de Sousa para a IV Jornada Chilena de Direito Natural (1979)

José Pedro Galvão de Sousa

O CONSÓRCIO MATRIMONIAL

É admirável como um pagão - Modestino - soube expressar com tanta profundidade o caráter comunitário do casamento, que o Cristianismo veio elevar ao seu máximo grau com a instituição do sacramento do matrimônio.

Bem conhecida é a fórmula lapidar daquele jurisconsulto romano definindo as núpcias a união entre o homem e a mulher, num consórcio perene e numa comunicação dos direitos divino e humano: Nuptiae sunt conjunctio maris et feminae et consortium omnis vitae, divini et humani juris communicatio (D. 23, 2, 1). 

Se grandes filósofos da antiguidade, na Grécia clássica, se anteciparam aos expoentes da filosofia cristã fazendo antever certas verdades por estes manifestadas em todo o seu esplendor, da mesma forma os juristas romanos antigos alcançaram, por via da razão, os princípios fundamentais do direito natural confirmados e transfigurados pelo direito cristão. 

Assim com o casamento. 

Da definição em apreço ressalta, em tríplice aspecto, o sentido comunitário da união matrimonial. Comunitário porque não vem só de um acordo, não se restringe a um contrato, não significa mera colaboração, mas, muito mais do que tudo isto, é vida em comum, fusão de sentimentos, integração mútua de dois seres na marcha para a realização de um mesmo destino. No século passado, o individualismo jurídico não viu no casamento mais do que um contrato. Ora, esta concepção de tal modo esbarrava contra a realidade patente aos olhos dos psicólogos, dos sociólogos e dos historiadores, que aquela visão unilateral e deformante não pôde resistir à análise objetiva e profunda dos maiores cultivadores do direito civil. E destes, como já tem sido observado, não há hoje um só, entre os verdadeiros cientistas do direito, que considere o casamento una situação estritamente contratual. 

Vejamos, pois, quais são os três aspectos indicados por Modestino: conjunctio, consortium, communicatio

Conjunctio: a união conjugal 

O casamento é a união do homem e da mulher, união cuja natureza decorre da essência do ser humano e de inclinações que lhe são próprias manifestadas pela dualidade de sexos. 

Essa união constitui o casamento ou matrimônio, que se fundamenta na lei natural. 

As disposições da lei natural não fazem mais do que nos apresentar o paradigma do procedimento humano para que este seja conforme à própria natureza do homem, a qual se manifesta pelas inclinações que lhe são próprias: a inclinação para a conservação da vida (correspondente ao instinto de conservação dos animais e a igual tendência nos seres do reino vegetal e até do mineral), a inclinação para a reprodução biológica (também existente entre os animais sob forma meramente instintiva) e a inclinação para o conhecimento da verdade ou para a vida social (estas últimas decorrentes da racionalidade humana, não se devendo confundir com a sociedade propriamente dita, agregados animais, com os das abelhas, das formigas ou dos castores). A reta razão, norma próxima da moralidade dos nossos atos, dá-nos a conhecer, com base na experiência, tais inclinações, e o que devemos fazer para as seguir de maneira condigna à nossa natureza e capaz de permitir a realização dos fins da vida humana. 

Diga-se de passagem que o direito natural, longe de ser uma pura abstração, uma quimera, tem um valor objetivo, ontológico, e suas disposições não fazem senão obrigar-nos ao respeito àquilo que essencialmente somos. Por isso, diz Cícero, numa de suas páginas imortais, que foge de si mesmo, renuncia à sua própria natureza, despoja-se da dignidade de ente humano quem desobedece às prescrições da lei natural, recaindo sobre si próprio, e como um castigo, as consequências sempre desastrosas da ruptura da ordem (De republica, II, 22). 

Posto isto, voltemos a considerar a lei natural enquanto fundamento do matrimônio. 

Três questões cumpre considerar aqui: 

1) Os fins do casamento; 

2) A obrigação do casamento; 

3) A origem do casamento. 

Quanto aos fins, eles se inserem numa hierarquia. A finalidade principal do casamento é a procriação, pois nisto se encontra a razão de ser da necessidade da união conjugal procedente da dualidade de sexos. A propagação do gênero humano é assegurada pela geração da prole. E desta resulta, como consequência necessária, a educação dos filhos, dever e direito natural dos pais. Além disso, o casamento é ordenado pela natureza ao amor e auxílio mútuo dos cônjuges. Finalmente, ele proporciona a disciplina moral tradicionalmente indicada pelos teólogos na expressão remedium concupiscentiae

A obrigação do casamento não é imposta pela lei natural a todos os indivíduos singularmente considerados. Entre as inclinações conformes à lei natural, algumas visam ao bem do indivíduo – por exemplo, a conservação da própria vida – e outras ao bem do gênero humano, e este é o caso da inclinação matrimonial. Ora, aquilo que se exige para a perfeição do gênero humano pode não corresponder à perfeição de um indivíduo. Assim se explica que o estado celibatário seja também plenamente conforme à lei natural, podendo mesmo tornar-se fonte de grande perfeição para o indivíduo – quando este o observa a serviço de Deus – e de muitos benefícios para a sociedade. Donde o ensinar a Igreja a excelsitude da virgindade consagrada, enaltecida pelo Apóstolo das Gentes num plano superior ao do matrimônio (2ª Epístola aos Coríntios, capítulo 7). 

Quanto à sua origem, ainda segundo a lei da natureza, o casamento é, sem dúvida, um contrato, pois não existe senão mediante o consenso mútuo dos nubentes, mas longe está de poder comparar-se aos contratos que dependem só da vontade das partes contratantes. Com clareza, explica Leonel Franca, no livro III, capítulo primeiro, de seu notável e sempre atual ensaio O Divórcio: “O matrimônio é, portanto, um contrato que só depende dos contraentes quanto à sua existência, não quanto à sua natureza. O consentimento dos nubentes é necessário para a constituição da família, não para a sua conservação. Esta depende da própria natureza da sociedade conjugal. A vontade dos cônjuges deve adaptar-se-lhe como a uma obrigação moral superior. Já São Boaventura distinguia as causas eficientes em duas categorias: não conservantes e conservantes. As primeiras produzem o efeito e não o conservam: tal a faca que abre uma ferida; as outras são necessárias para a produção e conservação do efeito, como o sol relativamente à luz. O consentimento dos cônjuges no contrato matrimonial é simplesmente eficiente; dá nascimento a uma família. A sua causa conservadora é a própria natureza com suas exigências superiores e intrínsecas da unidade e perpetuidade”. 

Tais considerações põem em evidência que na união conjugal a liberdade das partes é superada por razões superiores, decorrentes dos fins naturais do casamento. O que condiz com o sentido mais profundo do amor que une os cônjuges. A este propósito cabe lembrar as seguintes e belas reflexões de Gustave Thibon em seu livro Ce que Dieu a uni: On ne prend pas une épouse, on se donne á ele. Se marier c’est peut-être la façon la plus directe de ne plus s’appartenir [i. e.: nós não tomamos uma esposa, nós nos damos a ela. Casar-se talvez seja a maneira mais direta de não se pertencer mais]. 

Fruto do amor, a união conjugal é uma escola de sacrifício, mesmo porque o sacrifício é a prova do amor. O verdadeiro amor consiste no desprendimento de si mesmo e na entrega à pessoa amada, sem medir sacrifícios. O que ocorre tanto no caso do amor conjugal como no dos amores materno e paterno. Amor não se confunde com paixão animal, segundo pensam os que do prazer fazem a meta da vida. Se o amor pode nascer da fogueira de uma paixão, ele acaba por converter-se numa comunhão de almas e de vidas. Caso contrário, não terá passado da expressão de um refinado egoísmo. E onde há egoísmo não há lugar para o amor. 

O amor conjugal implica, pois, doação e dependência, e o segredo da felicidade conjugal está em amar essa dependência. Fora disso, isto é, sem renúncia e vitória sobre o próprio eu, ninguém será feliz no casamento. 

Consortium: o vínculo indissolúvel 

Ao definir o casamento um consortium, o jurisconsulto romano acrescentou logo: omnis vitae. Aí está afirmada a indissolubilidade do vínculo conjugal. 

Companheiros inseparáveis, ligados pelo amor, partilhando da mesma sorte – e por isso mesmo sendo chamados consortes – os esposos tomam sobre si o suave jugo que há de durar por toda a existência, tornando-os unidos nas alegrias e nos sofrimentos. 

Essa perenidade indestrutível do vínculo matrimonial é também um impositivo da natureza e, por conseguinte, de Deus, autor da natureza. Reclama-a o bem da prole, a educação dos filhos resultante do constante esforço e sobretudo da afeição e do carinho dos pais. Perante este fim superior, deve inclinar-se a vontade dos cônjuges, aceitando as limitações que, longe de os diminuir, os engrandece ainda mais tanto no amor como sacrifício. 

Os homens são livres de escolher entre o estado matrimonial e o celibatário, de querer ou não o casamento, mas nunca de querer o casamento sem ao mesmo tempo admitir as condições e consequências exigidas pela ordem natural, cuja violação implica aviltamento da dignidade humana. E entre estas exigências está a indissolubilidade. 

Mas no caso de amor malogrado? E quando os cônjuges não conseguem encontrar no casamento a felicidade a que aspiravam? 

Eis o terreno onde são mais fundas as divergências entre os defensores do casamento indissolúvel e os divorcistas, estes invocando o "direito à felicidade". 

Tudo depende da concepção dos fins do homem, de uma filosofia da vida. Os adeptos do divórcio não veem, acima da felicidade neste mundo, outra meta para o homem, enquanto seus adversários racionam com a mente voltada para valores mais altos. O divórcio resulta de uma posição nitidamente individualista, ao passo que os sustentadores do casamento indissolúvel têm em vista, mais do que o bem particular do indivíduo, a estabilidade da família, o interesse da sociedade e sobretudo o bem da prole. 

Aliás, o direito à felicidade não é absoluto. Há, na vida, casos de infelicidade irremediável, como nos mostram certas enfermidades ou as consequências de certos desastres. A questão está em saber fazer do sofrimento uma escalada da verdadeira felicidade, mas o que não se pode é, para atender ao bem de alguns poucos, ir contra o bem de toda a sociedade. Não cabe aqui analisar os efeitos do divórcio, neste sentido, já suficientemente estudados por tantos sociólogos e juristas, fazendo ver o estado de "anomia" social produzido pelo divórcio. 

De mais a mais, como já foi visto, a felicidade no casamento não importa ausência de sofrimento a até requer dos cônjuges muita capacidade de sacrifício. É preciso que eles saibam sofrer para poderem ser felizes e só o serão desde que, em meio às contradições encontradas na vida conjugal, se sirvam destas não para criar uma hostilidade recíproca, mas para fortalecer o seu amor. 

Consócio perene. "Por toda a vida", no dizer de Modestino. E a não ser assim - mas dentro dos postulados da concepção individualista e materialista da vida -, não seria mais consequente abolir a própria instituição do casamento? 

É o que nos faz ver muito bem o parlamentar brasileiro Daniel Faraco, em artigo publicado no Correio do Povo de Porto Alegre (30-X-1970):

"A grande questão que afinal se coloca é a do sentido do casamento e da hierarquia dos valores na qual ele se insere.  
Se o casamento tem sentido exclusiva ou predominantemente individualista, cumpre então e desde logo questionar a sua própria razão de existir. Se os interesses dos cônjuges ocupam o primeiro lugar e tudo mais se lhe subordina, por que motivo se há de disfarçar essa situação com a capa matrimonial? Bem mais lógica é a posição - que alguns proclamam sem rebuços - de abolir o casamento como velharia inútil. Quando muito, para conhecimento dos amigos, caberia una comunicação declaratória de endereço, caso se possa prever que a ligação durará algum tempo e importará em residência comum.  
Mas se o sentido do casamento é, como não pode deixar de ser, predominantemente social, estão os interesses dos cônjuges devem subordinar-se ao bem comum, e não vice-versa.  
De fato, a estabilidade do matrimônio é um imperativo que decorre de seu papel na vida social. Sem o casamento estável, a sociedade decai em conteúdo humano e se esvazia do cimento moral, que a distingue da simples multidão. Há uma ordem natural que dirige o casamento no sentido dos filhos e coloca os interesses e a felicidade destes acima dos interesses e da felicidade dos pais. Quando isso não ocorre, caracteriza-se uma situação de desordem que atinge os próprios fundamentos da sociedade e os subverte". 

Eis toda a questão. Ou o sentido plenamente comunitário do casamento, daí resultando a sua indissolubilidade; ou o sentido individualista, que destrói os alicerces da instituição matrimonial. 

Communicatio: a sacralidade do matrimônio 

Sacrifício: de sacrum facere. Os sofrimentos em comum da vida matrimonial têm o sentido de uma oblação. E o matrimonio realiza-se na sua plenitude, tornando-se fonte fecunda e manancial inesgotável de verdadeira felicidade, quando os sacrifícios que exige são oferecidos a Deus, na comum convicção dos cônjuges de que ao homem não cabe separar o que Deus uniu. 

Esse sentido mais profundo do casamento encontra-se nos povos primitivos, e, quando foi expresso na limpidez do conceito de Modestino, o Cristianismo não havia ainda transformado todo o Império Romano e conquistado a Europa, mas a sociedade pagã daquele tempo, com toda a sua degenerescência moral e os seus vícios, estava ainda assim impregnada de sacralidade. Divinizava as forças da natureza, “tudo era Deus exceto Deus” como disse Bossuet. E a consciência humana não adormecera de todo - "a alma humana é naturalmente cristã", dirá Tertuliano -, razão pela qual se reconhecia e proclamava o caráter sagrado do matrimônio.

Foi preciso chegar ao neopaganismo moderno - muito mais perverso do que o paganismo dos antigos gentios, porque este era o de uma sociedade que viveu sem conhecer o Cristianismo nem a Revelação mosaica, mas assim mesmo tinha o senso do sagrado e respeitava a lei natural ao passo que o neopaganismo de hoje procede de uma rejeição da mensagem cristã- para que ao casamento e à família se negassem os seus fundamentos religiosos.


O divórcio, em nossos dias, é expressão do individualismo, ou seja, do humanismo naturalista do homem moderno, que se manifesta em duas etapas: o individualismo propriamente dito e o coletivismo, este um resultado e uma continuação daquele, sendo, no fundo, o individualismo levado ao extremo numa cosmovisão materialista da vida. Um tal humanismo é consequência da secularização ou dessacralização das mentalidades e das instituições, que teve início no outono da Idade Média - para empregar a expressão de Huizinga - e no dealbar do Renascimento pagão paralelamente ao do protestantismo. A dessacralização penetra hoje na própria Igreja, como os Papas deste século têm advertido, dando-se até o caso insólito de católicos - quando não sacerdotes! - virem a público tendo a desfaçatez de preconizar o divórcio e postergando assim o caráter sagrado do matrimônio.

A comunicação do direito divino e do direito humano referida Modestino corresponde à instituição do casamento por Deus, ao criar o homem e dar-lhe uma companheira "para que não estivesse só" (Gen. 3, 18), e à elevação do matrimonio a sacramento, na Nova Lei, por Cristo, cuja presença nas bodas de Caná, aí fazendo o primeiro milagre relatado no Evangelho, é bastante significativa.

Essa comunicação entre o divino e o humano está nos sacrifícios oferecidos pelos cônjuges a Deus -sendo que estes, a seu modo, se consagram a Deus para cumprir a sua missão - e nas graças dadas por Deus, como sacramento do matrimônio, aos que o recebem e podem assim santificar-se no estado que abraçaram.

Assim, do plano do direito natural, acessível aos que não tiveram conhecimento da Revelação (Rom. 2, 14), passamos para o plano do direito cristão.

Instituição natural e divina, foi o casamento caindo paulatinamente, entre certos povos, num tal estado de degradação a ponto de não mais se reconhecer, sob as formas grosseiras da poligamia e da poliandria, aquela admirável unidade social feita de vida e de sentimentos entre os cônjuges, os pais e os filhos. A mulher estava reduzida à escravidão e transformada em objeto de prazer, a autoridade do chefe era tão excessiva que rompia a igualdade natural dos esposos, tendo o pai e o marido, por vezes, o direito de vida e de morte sobre seus subalternos, carecendo a elevação dos filhos do ambiente de elevação moral que naturalmente pressupõe.

O cristianismo restabeleceu a primitiva dignidade do casamento, assegurando os direitos do homem e da mulher, opondo à licenciosidade dos costumes conjugais a lei da fidelidade recíproca, transformando o despotismo arbitrário do chefe de família na autoridade hierárquica dos pais e do marido, oferecendo, enfim, para o cumprimento dos deveres relativos à educação dos filhos, os meios indispensáveis, de ordem natural e sobrenatural.

Mais ainda. Se a família já tinha um caráter religioso, como o demonstra o exemplo dos gregos e dos romanos como culto dos lares e dos antepassados, depois de Jesus Cristo vir ao mundo e consumar a obra da Redenção, o ato constitutivo do matrimônio foi engrandecido pelo sacramento, de tal maneira que um não pode existir sem o outro, nas perspectivas do direito cristão. Daí a expressão usual entre os teólogos e canonistas para designar o vínculo matrimonial: contrato-sacramento. Note-se o traço de união, como a indicar que o sacramento não é um acréscimo, um elemento acidental que se justapõe ao contrato: ele afeta a essência mesma do contrato.

O cristianismo enobreceu, pois, o casamento, sacramentum magnum in Christo et in Ecclesia, no dizer de São Paulo (Ef. 5, 32). O homem e a mulher, unidos pelo matrimônio, são "dois numa só carne" (Gen. 2, 24 e Mt. 19, 6), tendendo, pela fidelidade à graça sacramental a tornarem-se um só coração e uma só alma, numa união que tem por símbolo e modelo a de Cristo com a sua Igreja.

No seu opúsculo De bono conjugali, enumera Santo Agostinho os bens do casamento cristão reproduzida por Pio XI na memorável Encíclica Casti connubii. Essa enumeração mostra-nos o direito cristão a confirmar e aperfeiçoar o direito natural. Proles, fides, sacramentum são os três bens da família constituída pelo casamento cristão. Os dois primeiros bens, prole e fidelidade conjugal, correspondem ao fim principal e aos fins secundários do matrimonio conforme a própria lei natural. E o terceiro representa o aperfeiçoamento do estado matrimonial depois da vinda de Cristo: o sacramento confere aos esposos graças especiais para uma união mais completa entre ambos, que lhes seja fonte de santificação, e para uma educação mais perfeita dos filhos, permitindo assim a melhor realização dos fins do casamento.

Vimos, pois, o contrato transfigurado no contrato-sacramento; o direito cristão cristão fortalecendo e sublimando o direito natural: a graça aperfeiçoando a natureza. 

A COMUNIDADE FAMILIAR

Sociedade natural, simples e completa, assim se nos apresenta a família como "célula social", expressão corrente e bastante sugestiva para indicar a relevância da família na sociedade civil.

Tal expressão é empregada, já se vê, por analogia metafórica, mas a analogia, no caso, é das mais procedentes. A célula é, no organismo, uma parcela natural, a última parcela em que se pode decompor um todo orgânico. Constitui um centro relativamente autônomo de vida, imperfeito porém, porque, para subsistir, requer energias vitais que circulam por todo o organismo. Mas estas energias, por sua vez, resultam do trabalho das células, assimilando os elementos necessários para a subsistência do ser vivo. Assim, cada uma das células é fonte da vida e da saúde para todo o corpo.

Sendo a sociedade um grande organismo moral, pode-se chamar a família de célula desse organismo. A família assegura à sociedade a continuidade orgânica, pela perpetuação do gênero humano, e assegura-lhe a continuidade moral, pela educação da prole.

Como vemos, a analogia da família com a célula pressupõe uma outra analogia, muito usual entre os sociólogos, a do todo social com o orgânico. Podemos admitir este paralelo sem cair no erro do organicismo e sem perder de vista que na sociedade há uma unidade de ordem e não unidade substancial.

Como a célula, na ordem biológica, é a unidade fundamental, parte integrante de um organismo, e última parcela de vida, assim também a família, na sociedade global, é a unidade natural e simples que constitui o núcleo fundamental da mesma. Natural, porque corresponde a uma inclinação natural do ser humano. Simples, porque não se pode decompor em outras sociedades menores. A sociedade conjugal é a sociedade de pais e filhos formam uma só comunidade. Além disso, a sociedade é simples como nenhuma outra sociedade o pode ser, pois nela os "sócios" vivem não apenas associados, mas identificados por uma comunidade de vida tal que, mesmo biologicamente e sobretudo afetivamente, os membros formam a mais perfeita unidade social.

Cabe a propósito evocar a distinção feita por Tönnies entre "sociedade" (Gesellschaft) e "comunidade" (Gemeinschaft). A primeira resulta de vínculos de tipo contratual. A comunidade implica uma vivência social mais profunda, sendo este o caso da família e também da nação, que é uma grande família histórica.

Voltando ao confronto da família com a célula, cumpre acrescentar que a célula não passa de uma parte do organismo vivo, enquanto a família é um organismo completo, visando à perfeição social do homem na sua totalidade, isto é, todos os bens da natureza humana, bens que a sociedade deve ajudar cada indivíduo a conseguir na ordem física, intelectual e moral. Por isso mesmo, a autonomia da família como centro de atividade social é muito maior que a da célula como centro de atividade biológica, daí resultando os direitos naturais da família em face do Estado. Inserindo-se no plano do espiritual e do temporal, a família ordena o homem para o bem de sua natureza de maneira muito mais completa que o Estado, cuja ação se faz sentir somente na ordem temporal. Donde o dizer o Código Social de Malines: "a família é a fonte em que se recebe a vida, a primeira escola em que se aprende a pensar, o primeiro templo em que se aprende a rezar". As funções sociais da família aí se acham devidamente discriminadas: função biológica, função pedagógica, função moral e religiosa. A família abrange o homem total, corpo e alma, como não faz nem pode fazer o Estado.

À família cabem ainda uma função econômica e uma função política. Pela primeira, ela se nos apresenta como unidade de produção e de consumo. No regime artesanal e na pequena indústria que precedeu o moderno capitalismo industrial, sua importância enquanto unidade de produção era muito maior, começando a declinar até desaparecer por completo após o aparecimento da máquina. Continua, porém, a desempenhar papel primordial enquanto unidade de consumo. Da mesma forma, a função política da família tem deixado de ser exercida nas condições e circunstâncias dos povos modernos, desde que o individualismo liberal começou a desagregar as sociedades, preparando caminho para uma centralização estatal e para o totalitarismo.

A missão do Estado é proporcionar as condições externas para o bem temporal dos indivíduos reunidos em sociedade. A família atua muito mais eficaz e profundamente sobre cada um de nós, pois  lhe compete promover o pleno desenvolvimento da personalidade e integrar o homem na vida social, proporcionando-lhe também os elementos básicos imprescindíveis para a sua formação cívica.

Nesse sentido, tem a família uma sociabilidade muito mais perfeita que o Estado. Se a este se aplica o conceito aristotélico tomista de communitas perfecta, é no concernente à suficiência dos bens necessários para a vida. Aristóteles tinha diante si o exemplo da cidade grega - a polis - que, além de poder realizar por si mesma o seu próprio fim e de atender às próprias necessidades com recursos próprios, vinha completar os agrupamentos menores nela reunidos, proporcionando-lhes condições necessárias à manutenção da existência e ao bem-estar de todos. Tratava-se da ideia de "autarquia" segundo a concepção do Estagirita,isto é, de uma sociedade que subsiste por si mesma com governo próprio e suficiência de recursos.

O Estado é, pois, sociedade perfeita no sentido de completar a tendência natural do homem para a vida em sociedade. A sociabilidade aí está plenamente realizada, donde a expressão communitas perfecta. Quanto à perfeição dos vínculos sociais, porém, isto é, a sua força unitiva, o entrosamento dos membros da comunidade, a coesão profunda do grupo então a família é indiscutivelmente mais perfeita que a sociedade política em qualquer de suas formas, abrangendo a dos Estados na atualidade.

Para concluir, nada melhor do que estas palavras do Santo Padre João Paulo II, realçando o caráter comunitário da família, em discurso aos participantes do Congresso sobre a Pastoral da Família, reunido em Roma, palavras pronunciadas a 5 de maio do corrente ano [1979] e transcritas no Osservatore Romano

"Num mundo em que parece diminuir a função basilar de muitas instituições, e a qualidade da vida sobretudo urbana se deteriora de modo impressionante, a família pode e deve tornar-se um lugar de serenidade autêntica e de crescimento harmonioso; e isto, não para se isolar em forma de auto-suficiência orgulhosa, mas para oferecer ao mundo um testemunho luminoso de quanto é possível a recuperação e a promoção integral do homem, se esta tem como ponto de partida e de referência a sã vitalidade da célula primária do tecido civil e eclesial 
É necessário, por conseguinte, que a família cristã se transforme cada vez mais numa comunidade de amor, tal que permita superar, na fidelidade e na concórdia, as inevitáveis provas que derivam das preocupações quotidianas; numa comunidade de vida, para dar origem e cultivar alegremente novas e preciosas existências humanas à imagem de Deus; numa comunidade de graça, que faça constantemente de Nosso Senhor Jesus Cristo o próprio centro de gravidade e o próprio ponto de força, de modo que fecunde os compromissos de cada um e adquira sempre novo vigor no caminho de todos os dias".
O cunho comunitário da família transcende, pois, os limites da sociedade civil e do temporal, protegendo-se na ordem espiritual e na constituição da Igreja. A sociedade civil é uma reunião de famílias e não de indivíduos soltos. E a Igreja, sendo, enquanto Corpo Místico, união das almas na comunhão dos santos, institucionalmente considerada tem nas famílias as suas verdadeiras comunidades de base. 

Finalizando, recordemos com filial acatamento mais estas palavras do Santo Padre João Paulo II, em Jasna Gora, quando da visita do Sumo Pontífice à sua pátria polonesa: "A família é a primeira e fundamental comunidade humana".

Obra de Esteban Murillo (1665-1670), retratando o casamento entre a Santíssima Virgem Maria e São José


sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Economia liberal X Economia católica

Breve comparação feita pelo político e filósofo espanhol Juan Vázquez de Mella y Fanjul, retirada e traduzida do discurso pronunciado em 23 de abril de 1903 no Teatro Trívoli de Barcelona*

 





Juan Vázquez de Mella y Fanjul

O que resta em pé daquela economia miserável que só serviu para produzir catástrofes? Essa economia diz que o capital não é mais que o produto destinado a uma nova produção, quer dizer, um efeito destinado a ser causa que, portanto, necessita de uma causa anterior, que não podia ser ele mesmo, posto que ninguém se dá o ser que não tem; o que prova, ademais, que há riqueza que constitui capital que não é produto, porque não é obra do trabalho dos homens, mas da natureza.

Essa economia diz que o trabalho é uma mercadoria que se regula, como as demais, pela lei da oferta e da demanda; e a economia social católica contesta: não; o trabalho, como exercício da atividade de uma pessoa, não é uma simples força mecânica, é uma obra humana que, como todas, deve ser regulada pela lei moral e jurídica, que está acima de todas as regras econômicas. 

Essa economia diz que o contrato de trabalho é assunto exclusivamente privado, que só interessa aos contratantes, e a economia católica contesta: não; o contrato de trabalho é diretamente social por seus resultados, que podem transcender à ordem pública e social, e a hierarquia de poderes da sociedade - e não somente o Estado, que é o mais alto, mas não o único poder - tem, em certos casos, o dever de regulá-lo. 

A economia liberal diz que o principal problema é o da produção de riqueza, e a economia católica contesta: não; o principal problema não consiste em produzir muito, mas em repartir bem, e por isso a produção é um meio e a partilha equitativa um fim, e é inverter a ordem subordinar o fim ao meio, ao invés do meio ao fim.

A economia liberal diz: existem leis econômicas naturais, como as da oferta e da demanda, e nas quais, não intervindo o Estado para alterá-las, deduz-se de si mesmas a harmonia de todos os interesses. A economia social católica contesta: não existem leis naturais que imperam na ordem econômica à semelhança das que regem o mundo material, porque a ordem econômica, como tudo o que se refere ao homem, está subordinada à moral, que não se cumpre fatal, mas livremente; e não se podem harmonizar os interesses, se antes não harmonizam-se as paixões que os impulsionam; e a oferta e demanda não é, tampouco, uma lei natural, porque nem sequer é lei, já que é uma relação perpetuamente variável, como são seus extremos, e a lei encontra-se na relação entre as causas que produzem as mudanças, e não no resultado.

A economia liberal diz: a liberdade econômica é a panaceia de todos os males, e a livre concorrência deve ser a lei suprema da ordem econômica. E a economia social católica contesta: não; o circo da livre concorrência, onde lutam os atletas com os anêmicos, é o combate no qual perecem os débeis esmagados pelos fortes. Para que essa contenda não seja injusta, é necessário que os combatentes lutem com paridade de armas e, para isso, é preciso que os indivíduos não fiquem dispersos e desagregados, mas unidos e agrupados em corporações e na classe, para que sejam como suas cidadelas e muralhas protetoras, para que a força de alguns e o poder do Estado não os esmague. 

A antiga economia liberal diz, referindo-se ao Estado em suas relações com a ordem econômica: deixai fazer, deixai passar. E a economia católica contesta: não; essa regra não se praticou jamais na História. Os mesmos que a proclamaram nunca a praticaram; e é um erro frequente crer nisso, no qual incorreram muitos e, entre eles, sábios publicistas católicos, por não terem reparado que a antiga sociedade cristã estava organizada espontaneamente, e não pelo Estado. Aquela sociedade havia estabelecido sua ordem econômica não a priori e conforme um plano idealista, mas segundo suas necessidades e condições; e, quando o individualismo encontrou-se com uma sociedade organizada de acordo com princípios contrários aos seus, proclamou a tese de que não era lícito intervir na ordem econômica, o que significou precisamente intervir para derrubar o que existia por meio de uma intervenção negativa, que consistiu em romper um a um todos os vínculos da hierarquia de classes e corporações que lenta e trabalhosamente haviam levantado os séculos e as gerações crentes. Qual intervenção é maior que romper, uma a uma, as articulações do corpo social e desagregá-lo e reduzi-lo a átomos dispersos, para dar-lhe, apesar de si mesmo, a liberdade da poeira, de modo que ele se mova em todas as direções de acordo com os ventos que sopram no topo do Estado?

Cartão postal baseado na obra L'Angélus, de Jean-François Millet (1857-59), retrata dois camponeses parando os trabalhos para rezar a famosa oração da Cristandade. O capitalismo afastou o homem do contato com Deus e com a sua família, fazendo-o trabalhar mais, alterando seus objetivos: não mais o acúmulo das riquezas eternas, mas da riqueza terrena.

*Alguns tempos verbais foram alterados, assim como a ordem de poucas orações, para dar maior inteligibilidade ao texto.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Instrução espiritual acerca da morte

Escrita por São Thomas More enquanto estava na prisão na Torre de Londres, em 1534 

Capela dos Crânios em Czermna, Polônia (1776)

Quem salvar a sua vida de um modo que ofenda a Deus, muito em breve chegará a odiá-la. Pois se dessa forma salvares a tua vida, aborrecê-la-á com tal ódio no dia seguinte que te entristecerá que a morte não te tenha levado um dia antes. Que hás de morrer, é algo de que sem dúvida alguma te lembrarás: mas como ou quando, não o sabes de modo algum. Razão tens para temer, não seja que depois desses adiamentos se sigam os tormentos sem fim no inferno, onde os homens desejarão morrer e a morte fugirá deles [cfr. Apoc 9, 6]; ao passo que, ao sofrimento da morte que tanto aborreces, ter-se-iam seguido sem nenhuma dúvida as alegrias do céu. 

Que insensatez é esta de pretender evitar a morte temporal para cair numa morte que dura para sempre? E, para cúmulo, não escaparás da temporal senão por algum tempo: é mero adiamento. Por acaso pensas que, se escapares agora da morte, já a terás vencido para sempre? Ou julgas talvez que morrerás, sim, noutro momento, mas sem dor? Pelo contrário, pode ser que te aconteça aquilo que aconteceu com aquele homem rico que prometia a si mesmo uma vida muito longa; Cristo recordou-lhe: “Insensato, nesta mesma noite virão buscar a tua vida” [cfr. Lc 12, 20]. 

Além disso, sabes com certeza que um dia terás de morrer, e também que não podes ter uma vida longuíssima, pois a vida do homem sobre a terra é muito breve. Finalmente, suponho que não duvidas de que, quando chegar o momento em que estiveres doente e acamado, começarás a sentir as angústias da morte que se aproxima e desejarás que, pela salvação da tua alma, tivesses padecido uma morte cruel e terrível muito antes. Não há razão, portanto, para temeres tão desesperadamente que aconteça aquilo que, como sabes muito bem, um pouco mais tarde desejarias que tivesse acontecido antes. 

Os que padecem pela vontade de Deus, que recomendem as suas almas ao seu fiel Criador [cfr; 1 Pe 4, 19]. Queridíssimos, quando Deus vos provar com o fogo das tribulações, não estranheis, como se vos acontecesse uma coisa muito extraordinária; antes, alegrai-vos por participardes da paixão de Cristo, para que, quando se revelar a sua glória, vós vos alegreis também com Ele cheios de júbilo [cfr; 1 Pe 4, 12-13]. Deveriam envergonhar-se os homens bons de serem mais timoratos em fazer o bem do que os homens maus em fazer o mal. Não seria impossível ouvir um ladrão dizer sem hesitação que seria um covarde quem vacilasse em sofrer meia hora pendurado, se depois pudesse viver sete anos de prazer e desafogo. E que vergonha seria então para um homem cristão perder a vida e a felicidade eternas, só para não padecer uma morte rápida antes do tempo! Sabendo, além disso, e muito bem, que há de sofrê-la de uma forma ou de outra, e dentro em pouco, e que, a não ser que se arrependa a tempo, imediatamente depois da sua morte temporal cairá na morte eterna, muito mais horrível do que qualquer outra morte. 

Se o ser humano pudesse ver um desses demônios que em grande número nos vigiam diariamente, desejando atormentar-nos para sempre no inferno, bastaria o medo desse único diabo para não dar nenhuma importância a todas as ameaças mais terríveis que se possam imaginar. E muito menos lhe importariam, se pudesse contemplar os céus abertos e Jesus ali sentado, como o viu o bem-aventurado Estevão [cfr. At 7, 55-56] 

O vosso inimigo, o diabo, anda girando ao vosso redor como um leão que ruge, em busca de uma presa que devorar [cfr. 1 Pe 5, 8]. Bernardo [Sermão XIII, sobre o Sl 90] diz: Agradeço humildemente ao grande leão da tribo de Judá; bem pode rugir esse outro leão, mas não pode morder-me. Por mais que nos ameace, não sejamos tão covardes que só pelos seus rugidos caiamos prostrados ao chão. Seria de verdade um animal e desprovido de inteligência que fosse tão pusilânime que se entregasse só por medo, ou que ficasse tão desconcertado com a vã imaginação das dores que talvez tenha de sofrer que, ao simples toque da trombeta, ainda antes de começar a batalha, já estivesse vencido por completo. Porque ainda não resististes até derramar o sangue [cfr. Hebr 12, 4], diz aquele valente capitão que bem sabia que os rugidos desse leão não eram coisa de que se chegasse a morrer. E outro diz: Resisti ao diabo e fugirá de vós [cfr. Ti 4, 7]. Resisti-lhe firmes na fé [cfr. 1 Pe 5, 9]. 

Aqueles que, tendo abandonado a esperança em Deus, vão em busca de auxílio nos homens, hão de perder-se, como advertiu Isaías (cap. 31). Assim pereceu o rei Saul que, por não ter recebido imediatamente o que era do seu agrado, impaciente, murmurando e desesperando de Deus, acabou por buscar o conselho de uma feiticeira, ele que havia decretado com edito público que todas as feiticeiras deviam ser castigadas [cfr. 1 Re 28, 2-25]. 

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