segunda-feira, 15 de abril de 2019

Notre-Dame: as chamas tardias da Revolução

O incêndio que impactou o mundo na Semana Santa possui uma íntima relação  simbólica com a História da França e da Cristandade



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O mundo assistiu, pasmo e incrédulo, ao incêndio que acometeu hoje, em plena Segunda-Feira Santa, a belíssima catedral de Notre-Dame de Paris, no coração da França; o símbolo máximo da Cristandade, construído naquela terra que fora outrora a Filha Primogênita da Santa Igreja Católica desde o batismo de Clóvis, no longínquo século V, primeiro rei cristão dos francos e terror dos bárbaros seguidores do arianismo. 

Tal data marcou para sempre o destino da Igreja e da França. Enquanto essa última honrasse filialmente aquela primeira, seria a joia mais brilhante da civilização cristã: território de inúmeros e imensos mosteiros como Cluny; de catedrais incomparáveis como a própria Notre-Dame e Chartres; de santos magníficos como Santa Joana d'Arc e São Luís de Montfort; do esplendor máximo da monarquia e da cavalaria cristã com São Luís IX.

Faz-se necessário recordar um trecho da carta que o grande Bispo de Reims, São Remígio, enviou para Clóvis quando de sua ascensão ao trono, em 481 d. C.:
"Vela para que nunca te abandone o juízo de Deus, a fim de que, por teus méritos, logres conservar esse posto que conquistaste por tua indústria e nobreza, porque, como diz o vulgo, os atos do homem se provam pelo seu fim. Rodeia-te de conselheiros que honrem teu discernimento. Sê prudente, casto e moderado; honra os bispos e atende seus conselhos, pois se vives em harmonia com eles, darás bem-estar ao país. Consola os aflitos, protege as viúvas, alimenta os órfãos, faze com que todo mundo te ame e te tema. De teus lábios saia a voz da justiça, deixa aberta a todo mundo a porta de tua presença. Joga com os jovens, posto que és jovem, mas aconselha-te com os anciãos. E se queres reinar, mostra-te digno disso."
O santo bispo dizia ao jovem rei tudo o que ele deveria fazer para que cumprisse bem seu dever: ordenar tudo a Deus, o bem temporal servindo ao bem espiritual, a espada terrena submissa à espada espiritual através de uma conduta prudente, casta e moderada, respeitando os direitos e os deveres da Igreja. Enfim, realizando aquilo que Leão XIII escreveu de maneira brilhante na encíclica Immortale Dei: a filosofia do Evangelho governando a nação. 

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O Batismo de Clóvis, por François-Louis Dejuinne (1786–1844)

A França gozou da verdadeira paz que apenas o Senhor de todas as nações e povos pode conceder. Floriu como nunca no reinado de São Luís IX, monarca que cumpriu magnificamente, no áureo século XIII, o que o Bispo de Reims aconselhara ao seu antepassado. Além de fundar hospitais, escolas, lutar em duas cruzadas, agir com extrema justiça (muitas vezes exercida pessoalmente nos bosques de Vincennes) e fazer ecoar imensa caridade para com os doentes, as viúvas, os órfãos, os pobres e os inimigos da França, escreveu ainda ao filho Filipe: 
"(...) Mantenhas os bons costumes do teu reino e expulses os maus costumes. (..) Honres e ames todas as pessoas da Santa Igreja, e tenhas cuidado para que nenhuma violência seja feita a elas, e que as doações e esmolas que os teus predecessores deram a elas não sejam retiradas ou diminuídas. (...) Ame-as e as honre para que possam fazer em paz o serviço de Nosso Senhor. (...) Eu te aconselho sempre a ser dedicado à Igreja de Roma, e ao Soberano Pontífice, nosso pai, e prestar a ele a reverência e a honra que tu deves ao seu pai espiritual."
Notemos mais uma vez o que diz o santo rei. Se o sucessor quisesse governar de maneira estável e profícua, deveria manter os bons e expulsar os maus costumes, inclusive os próprios, daí a primeira parte da carta se referir aos deveres diretos para com Deus, evitando o pecado mortal e ouvindo atentamente a Santa Missa. Só é possível manter os bons costumes do reino através de uma Igreja forte, auxiliada pelo Estado em sua tarefa imprescindível de salvar as almas, aplicando os méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo pelos Sacramentos. Como o corpo não exerce suas funções desconectado da cabeça, assim o rei deve obedecer ao Papa, representante de Cristo na Terra e cabeça da Igreja. 

Essa era a França católica até o século XIV, quando Filipe IV o Belo, neto do santo monarca, passou a concentrar o poder em suas mãos em detrimento da autoridade da Igreja, expulsando o clero dos assuntos governamentais. Bonifácio VIII, papa da famosa bula Unam Sanctam, chegou a ser esbofeteado por Sciarra Colonna, partidário do rei, e preso. Uma inversão radical na História da França tem seu germe na ocasião: a espada temporal insubordinando-se contra a espada espiritual e a Igreja rendida a um Estado sedento pelo poder. Que diferença encontramos entre Filipe IV e São Luís! Mas a diferença entre Estado e Igreja seria expandida até chegar à semelhança de uma abismo. 

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Sciarra Colonna esbofeteando Bonifácio VIII

Passaram-se os séculos e o Estado moderno se formou. Pouco a pouco, as camadas intermediárias da sociedade, os chamados "Estados", perderam a importante posição que ocupavam na monarquia temperada medieval. A nobreza começou a ser figurativa. O auge da dissolução foi a Revolução de 1789, de cunho anticristão, verdadeiramente satânica, como a chama Joseph de Maistre. As corporações de ofício foram abolidas; à nobreza restou ser completamente banalizada e ridicularizada com Napoleão.

Em seu período mais aterrorizante, a Revolução massacrou os clérigos e religiosos que não se submeteram à vergonhosa e lamentável Constituição Civil do Clero, cerceante dos direitos que Deus legou à Sua Igreja. Os camponeses e nobres da Vendeia, num incrivelmente virtuoso levante contrarrevolucionário da moribunda França, foram trucidados às centenas de milhares. Nas palavras do general republicano François-Joseph Westermann, em 23 de dezembro de 1793:
"Não há mais Vendeia. Ela pereceu, com suas mulheres e crianças, sob a nossa espada da liberdade. Seguindo suas ordens, eu esmaguei as crianças sob os cascos dos nossos cavalos, e massacrei as mulheres - elas não darão mais criança alguma para esses rebeldes. Não tomei um só prisioneiro."
As maiores barbaridades, blasfêmias e irracionalidades foram cometidas pelos revolucionários: multidões enviadas para a guilhotina em meses; instalaram-se cultos "laicos", de viés naturalista e racionalista; zombava-se de tudo que é santo, destruíram-se as igrejas, a catedral de Notre-Dame tornou-se um armazém de alimentos e suas obras foram saqueadas; profanaram-se as tumbas dos reis; a lista é extensa. Depois, a Concordata de Napoleão forneceu às ideias da Revolução o triunfo sob uma aparente tinta conservadora. A Igreja passou a depender de benefícios do Estado, como se não fosse Deus quem instituísse toda autoridade legítima (Rm. 13, 1). O imperador estrategista, tomando a coroa das mãos do papa Pio VII, selou definitivamente aquela desordem iniciada por Filipe IV: o Estado acima da Igreja, a espada temporal rebelada contra a espada espiritual. 

O resultado da Revolução na França é uma sociedade contrária à autoridade divina, que nega sua herança católica e monárquica, que destrona Nosso Senhor Jesus Cristo e despedaça os direitos de Deus para gritar "Vive la République" e louvar os pretensos direitos do homem. Que bela e inteligente noção de homem, essa dos revolucionários: ser contingente que recusa Deus Criador, mantendo-se distante da Perfeição, limitado em todos os sentidos de sua existência e vivendo na escravidão do pecado, clamando que conquistou a liberdade.

Os afogamentos de Nantes: inúmeros católicos, em sua maioria padres, mulheres e crianças, foram despidos de suas roupas, amarrados conjuntamente e afundados no rio. Pintura de autoria anônima.

Como se não bastasse a apostasia ocasionada pelo liberalismo, ainda há o problema do grande fluxo de muçulmanos que chegam à França e lá constituem famílias numerosas, papel que foi completamente esquecido pelo homem e pela mulher ocidentais, que preferem possuir um animal de estimação e viajar pelo mundo, vivendo confortavelmente e sem quaisquer responsabilidades além da satisfação do próprio ego, ao invés de gerar uma prole herdeira da espiritualidade e cultura cristã que lhes foi legada por grandes santos, ápices do heroísmo na História.

A destruição de igrejas na França não é novidade, nem algo remoto cuja poeira dos séculos encobriu. A Igreja de Saint-Sulpice, na capital do país, sofreu com o poder das chamas recentemente. Apenas em março passado uma dúzia de igrejas foram atacadas. Há que se considerar também as igrejas que foram demolidas ou estão sob o risco constante de demolição por "gerarem muitos gastos ao Estado francês". Culpa, em grande parte, do arrefecimento na Fé: apenas 5% dos católicos franceses vão à Missa; isso não é nem 2% da população no total. Não pensemos, porém, que tal enfraquecimento tem sua origem em fatores externos; encontra suas raízes no modernismo, triunfante a partir do Concílio Vaticano II, chamado de "a Revolução de 1789 na Igreja" pelo Cardeal Suenens. Tal triunfo não será, contudo, duradouro: as portas do inferno jamais prevalecerão contra a Igreja, como prometeu Nosso Senhor mesmo (Mt. 16, 18).

A ruína de Notre-Dame pelo fogo é o símbolo visível do que ocorre no espírito da nação francesa e na Cristandade em geral há muito tempo, consumido pelo fogo satânico do hedonismo, do consumismo, das ideologias perversas que ecoam o grito perverso de Lúcifer, "Non serviam". Toda sociedade que recusa Cristo como rei terá Satanás como governante: "Quem não está comigo está contra Mim; e quem não ajunta comigo, dispersa" (Mt. 12, 30). Distantes do Salvador e legítimo Rei das Nações, resta aos povos observar passivamente o que ainda sobrou no mundo de belo, bom e verdadeiro ruindo, transformando-se em cinzas, enquanto anestesiam-se com os prazeres terrenos, esquecendo a Eternidade. 

Se a França, a Europa e a civilização católica como um todo irão ressurgir, isso não temos como prever; cabe somente à Providência e seus desígnios ocultos. Mas não nos custa repetir a estrofe da canção Le Seigneur appelle ses militants:
Mais de partout les ennemis nous agressent,
Et ils complotent pour que France disparaisse.
Nous voulons ce que Dieu veut pour la France:
Un Etat juste, digne et chrétien.
Mas de todos os lugares os inimigos nos atacam,
E eles estão conspirando para que a França desapareça.
Queremos o que Deus quer para a França:
Um Estado justo, digno e cristão.
Que o incêndio de tamanha joia da Cristandade acorde o povo francês e todos os outros, para que se submetam ao Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo por intermédio da Santíssima Virgem Maria, a quem a catedral é dedicada, rejeitando a apostasia liberal e o secularismo que envenenaram tanto as sociedades como as almas individualmente consideradas, e isso mesmo onde a parcela populacional dos católicos ainda é maioria.  

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