sábado, 29 de dezembro de 2018

Valores eternos

Comentário do jurista José Pedro Galvão de Sousa publicado na revista Reconquista, vol. I, nº 2 (1950). Asteriscos meus, notas do autor.


Família rezando a Ave-Maria ao cair da noite. Pintura de Ferdinand G. Waldmüller.

Dizer-se tradicionalista nos dias que correm não é para os cortejadores da aura popular, para os espíritos impressionáveis que reduzem o futuro do mundo às vinte e quatro horas do dia seguinte.

Estes hão de preferir outro vocabulário político. Serão os homens da "democracia", do "socialismo", do "progressismo" (1). Depois das últimas eleições inglesas talvez tenham deixado de ser os homens do "trabalhismo", se é que perceberam o verdadeiro alcance daquele pleito.

Tradicionalismo, para eles, é igual a passadismo. É puro conservadorismo. É pura utopia. Para não falar já dos que grosseiramente o confundem com os nacionalismos totalitários.

Procuram as vantagens do momento. Fazem a política do êxito imediato. Acomodam os ideais às circunstâncias, sacrificando muitas vezes a pureza daqueles às exigências inexoráveis destas.

Tudo isto podia dar muito certo - no ponto de vista em que se colocam - numa época pacatamente burguesa, como a Europa de antes de 14 ou o Brasil antes de 30.

Mas hoje tal imediatismo ilusório nem sequer permite colher, por algum tempo que seja, os frutos desejados. Os acontecimentos se precipitam, a guerra atômica tolda os horizontes com a sua terrível ameaça e o realismo soviético zomba dos seus cândidos adversários.*

Em meio a essa pavorosa confusão mental, dizer-se tradicionalista é necessariamente afrontar os ídolos do tempo. Mas é também considerar os fatos sub specie aeternitatis. É fazer a política da verdade histórica. É ser intransigente na defesa de um ideal, aguardando a hora em que a Providência permita a sua plena realização, sem concessões nem meias tintas. 

Não se trata propriamente de conservar. Há tanta coisa errada que precisa desaparecer! Não se trata de voltar atrás, pois a história não é uma fila de cinema que se possa fazer correr em sentido contrário. Contemplar beatificamente o passado seria recursar-se a qualquer ação sobre o presente e o futuro. Trata-se, como escreve Gustave Thibon, de "um retorno não ao passado como tal, mas aos valores eternos que floresceram nas melhores épocas do passado".

Esses valores eternos são elementos permanentes na organização dos povos. Repudiá-los é ferir a ordem social e humana nos seus princípios fundamentais, é por isso mesmo abrir a porta às crises insolúveis. Há uma política natural fora de cujos preceitos as sociedades se desencaminham e caem na anarquia. As prerrogativas inalienáveis da criatura humana, o caráter sagrado da família, a autonomia dos grupos sociais em face do Estado, tudo isso são princípios que floresceram em determinadas épocas com maior viço, e que hoje se acham comprometidos ou mesmo suprimidos por completo. 

Restaurar as condições que possibilitem a sua nova florescência não é retroceder no curso da história. É receber da História as lições de "política experimental" que ela sabiamente nos oferece.

Pretender construir o mundo novo de amanhã sem esse lastro de experiência é o mesmo que edificar sobre areia ou divagar através das nebulosidades da "política abstrata". (2)

E qual a primeira restauração a promover?

A restauração espiritual. A volta à verdade católica. O restabelecimento do primado da ordem sobrenatural.

O homem não vive só no estado de natureza. Elevado ao plano sobrenatural, aí encontra a perfeição do seu ser. Cindir a ordem natural e a sobrenatural é mutilar o homem. E organizar as sociedades como se o homem se movesse somente no plano da natureza é deixá-las na perpétua desorganização a que as atirou o Estado leigo.

Atendam os povos e não só os indivíduos ao apelo do Sumo Pontífice para o grande Retorno, feito ao ser promulgado o presente Ano Santo.

Só o retorno aos valores eternos, aos valores da Tradição - que constituem, como diz Francisco Elías de Tejada, em artigo inserido neste número**, a "medula dos povos" - só esse retorno poderá salvar a humanidade.

Retorno que será Reconquista: a reconquista de valores florescentes outrora e perdidos nos descaminhos por onde vagueiam sem norte os povos modernos. 


NOTAS E ASTERISCOS 

(1) O verdadeiro progresso se fundamenta na tradição, pois é fruto dos esforços das gerações que nos precederam. Quanto à democracia, deixou de ser a efetiva participação do povo no governo para se transformar no absolutismo de uma fictícia "vontade popular". É nas lições do tradicionalismo político que se encontram os rumos de uma autêntica democracia. 

(2)  La Tour du Pin dizia que, com a Revolução Francesa, termina a fase do direito histórico e se inicia a do direito abstrato. Digamos o mesmo da política. 

*Lembremos que o autor escreve no ano 1950, em plena Guerra Fria.
**La Lección Política de Navarra, publicado também na revista Reconquista, vol. I, nº 2. 

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